Pobre e mal-agradecido

A chamada ‘crise dos professores’ ainda não foi suficientemente esmiuçada.

Os partidos da direita foram justamente criticados – eu próprio o fiz aqui há 15 dias – mas no fim de contas foram eles que evitaram a queda do Governo.

Bastava o PSD ter votado ao lado do PCP e do BE para o diploma que obrigava à contagem integral dos nove anos, quatro meses e dois dias ser aprovado e António Costa ser obrigado a demitir-se – de acordo com a ameaça feita uma semana antes.

Portanto, a direita salvou o Governo socialista e evitou uma crise política, priviligiando a estabilidade.

Num momento crítico, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda tiraram o tapete a Costa – e teve de ser a direita a vir em seu socorro.

O primeiro-ministro pode pois agradecer aos partidos da direita, e em particular ao PSD, o facto de continuar no cargo sem sobressaltos.

Curiosamente, no entanto, nos dias que antecederam a votação, António Costa atacou duramente a direita, acusando-a de incoerência, e poupou a extrema-esquerda, considerando ‘natural’ o seu voto contrário às pretensões do Governo.

Ou seja, Costa protegeu os partidos que poderiam ter provocado a sua queda – e atacou os que o salvaram.

Chama-se a isto ser pobre e mal-agradecido.

A forma como António Costa desculpabilizou o PCP e o BE só pode ter uma explicação: querer ficar com a porta aberta para repetir a ‘geringonça’. 

Este é o cenário desejado por Pedro Nuno Santos, recentemente promovido a ministro, e pela ala esquerdista do PS.

Como começa a perceber-se, o PS está dividido em duas metades – uma liderada por Nuno Santos, outra que tem como referência Mário Centeno.

Enquanto este é importante por ser quem mete literalmente ‘as mãos na massa’, o outro é decisivo porque segura os cordelinhos da política parlamentar.

Cada um destes ministros tem naturalmente os seus apoios.

Centeno tem tido o apoio decisivo do primeiro-ministro.

E talvez não tenha mais nenhum, pois o ministro das Finanças é em todos os governos o mal-amado, o desmancha-prazeres.

Quanto a Nuno Santos, tem alguns apoiantes evidentes, desde a ministra da Saúde ao ministro da Educação, passando pela ministra da Cultura.

António Costa é o fiel da balança deste Governo dividido – e mantém a unidade dando benesses às duas metades.

Assim, apoiou Centeno na guerra com os professores, mas em contrapartida forçou-o a aceitar os manuais gratuitos nas escolas, cedendo a uma exigência da esquerda. 

Por outro lado, respaldou sempre o ministro das Finanças nas poupanças feitas no SNS, mas em contrapartida deu um rebuçado à esquerda com a nova Lei de Bases da Saúde.

E nos transportes aceitou que Centeno não disponibilizasse verba para a melhoria do material, mas em contrapartida obrigou-o a pagar os encargos resultantes da redução brutal dos passes sociais.

E assim por diante, dando com uma mão e tirando com a outra.

Note-se, a propósito, que o primeiro-ministro neutralizou algumas vozes que punham em causa este difícil equilíbrio – como Isabel Moreira e João Galamba, que falavam constantemente nas televisões, criando um ambiente de guerra e dando ao PS uma imagem quase revolucionária.

Eram dois socialistas que mais pareciam do BE e empurravam o PS muito para o lado esquerdo.

Ora, Costa calou-os: Isabel Moreira passou a intervir muito menos e Galamba, com a nomeação para secretário de Estado, praticamente desapareceu.

Do lado direito, o líder socialista retirou  das listas Francisco Assis, mostrando aos mais moderados o que lhes acontece quando ‘desafinam’.

Voltando à crise dos professores, esta teve o mérito – ou demérito – de mostrar que, em questões fundamentais, como as que dizem respeito ao cumprimento do défice e à disciplina financeira em geral, o Governo pode contar com a direita.

Por questões de coerência e fidelidade aos princípios, o PSD e o CDS estão obrigados a votar ao lado do Governo na defesa do rigor orçamental e dos compromissos europeus ou internacionais (como a NATO). 

António Costa já percebeu isso.

Ora, se noutras questões puder contar com a esquerda, como tem acontecido muitas vezes, o PS fica numa situação ótima para jogar ao mesmo tempo em dois tabuleiros. 

É pois natural que António Costa queira reeditar a ‘geringonça’ na próxima legislatura. 

Com o PCP e o BE amarrados ao Governo por acordos escritos, e o PSD e o CDS amarrados pelos princípios, Costa pode fazer quase tudo o que quiser. 

Governando com um pé na esquerda e outro na direita, torna-se o verdadeiro ponto de equilíbrio no país.

Recorde-se que, prevendo exatamente este cenário, Pedro Passos Coelho, quando a ‘geringonça’ tomou posse, disse que não contassem com ele para servir de muleta ao Governo nos momentos em que a esquerda lhe faltasse. 

Foi o que aconteceu nesta crise: o PSD foi mesmo a muleta salvadora.

E, ainda por cima, foi atacado por António Costa! 

Por estas e por outras, não acredito que este equilíbrio possa manter-se indefinidamente.

O próprio equilíbrio interno no PS é complicado, como se viu esta semana, com António Costa a aproximar-se dos liberais europeus e Pedro Nuno Santos a demarcar-se.

E haverá um momento em que a corda na Assembleia se romperá – ou pela esquerda, que não quererá suportar por mais tempo a disciplina orçamental e a sujeição a Bruxelas, ou pela direita, que se fartará de ser cúmplice do único Governo na Europa apoiado por partidos de inspiração comunista.

A verdade, porém, é que ninguém acreditava que a ‘geringonça’ pudesse durar uma legislatura, e ela ainda lá está…