‘Dentro de mim tenho sempre muitas coisas’

Todas as vidas são peculiares e a de Ricardo Ribeiro não só não foge à regra como lhe acrescenta mais algumas curvas e contracurvas, ao ponto de não termos chegado a todos os capítulos do seu caminho nesta entrevista. 

Nome já mais do que firmado, aplaudido e reconhecido nas ruelas do fado, Ricardo Ribeiro está de volta com Respeitosa Mente, álbum onde ao lado de João Paulo Esteves da Silva e de Jarrod Cagwin se descola completamente desse que é o seu berço para cantar uma outra história. Um disco que não é de fados, mas antes uma lufada de poemas escolhidos a dedo, cantados por um homem novo por fora – perdeu mais de cinquenta quilos – mas que, por dentro, e apesar de ainda não ter chegado aos quarenta, nos fala com uma alma velha, atenta ao que a rodeia e ciente dos tantos mundos que temos por dentro. Neste disco, mais uma novidade: arrisca-se pela primeira vez a tocar alguns instrumentos. Ensaiou «quatro ou cinco horas por dia» para os dois concertos: o de dia 22 de maio na Casa da Música, no Porto, que já aconteceu, e para o de dia 1 de junho no CCB, em Lisboa.

Como é que um fadista parte para um disco que não é de fados?

Foi uma necessidade interior. Era importante para mim cantar outra poesia e outra música. O fado é música e poesia, mas para mim era importante cantar outra poesia e outra música que, a mim, não me é permitido cantar na linguagem fadista. Dentro de mim tenho sempre muitas coisas, e era de extrema importância fazer este disco, que também funciona com duas histórias em paralelo, uma que é vivida no real, no concreto, outra que é vivida na minha imaginação.

O fado era então, pelo que conta, um bocadinho um espartilho?

Não era. Simplesmente tenho uma história no fado, comecei de muito pequeno. Conheço a linguagem, por isso digo muitas vezes que saio e entro do fado quando quiser. Isto não tem qualquer arrogância ou prepotência, é uma realidade. Não é um espartilho porque dentro do fado tenho uma grande liberdade, porque como tenho bases, história e conhecimento da linguagem ele dá-me essa total liberdade. Por outro lado, obriga-me a respeitar determinadas características – não regras – que reconheço no fado e que me fazem disser assim: ‘Agora preciso de cantar outro tipo de música, por isso faço um disco diferente’.

Acha que todos os fadistas têm esse respeito por essas características que defende?

Não sei, é um assunto que não me faz muito sentido. Essa pergunta obrigar-me-ia a fazer um julgamento, e eu não quero fazê-lo.

Mas fez para si próprio.

Para mim posso fazer os julgamentos que quiser, para os outros não porque não sei o que os move, por isso seria uma injustiça. Sei o que me move. Porém, está tudo à vista de todos e por isso é olhar e perceber – há muitas pessoas que estão nos fados hoje em dia e que não têm história no fado. Quando digo história, cuidado: não é uma coisa negra, de depreciação. Simplesmente as pessoas não têm culpa porque as suas referências são muito breves, ou são referências de hoje e não de ontem. É natural que por não terem história deixem de ter atenção a certas coisas, é natural.

Um jovem que quer começar no fado e que não tem essa história, onde a vai buscar?

Aos velhos. Aos antigos. Àquilo que as gerações mais antigas fazem. É preciso interessarem-se, irem talvez ao Museu do Fado e tentar perceber. Ouvir os discos antigos, tentar falar com as pessoas que ainda sabem e que ainda estão dispostas a ajudar. Claro que no mundo de hoje é muito difícil, não só no fado, mas em tudo, porque o mundo está a mudar. As línguas são organismos vivos e a música também. É evidente que quando um indivíduo cria neologismos e novas linguagens dentro da própria língua, as coisas vão-se movendo – e é exatamente o mesmo nas expressões artísticas e há uma regeneração. O problema dessa regeneração é quando não tens bases para poder regenerar. Gostam muito de usar a palavra inovar, da qual não gosto muito nestes campos, porque quer dizer algo novo dentro de si. [Pega num copo] Como posso inovar sobre um copo se não sei como foi feito na sua génese, se não conheço nada de vidro?

Este trabalho é então um reflexo dessa regeneração de que fala ou é uma coisa completamente diferente?

Completamente diferente. Não tem nada a ver com os fados. É um disco em que se juntaram três músicos e por acaso – quer dizer, eu não acredito no acaso, mas pronto – eu sou fadista. Precisei, interiormente, de mandar uma outra mensagem.

Falou da importância dos velhos no fado. Já se coloca nessa posição, sente-se preparado para passar a sua mensagem? Os jovens procuram-no? Já tem uma carreira muito longa, apesar de ter 37 anos.

É muito difícil falar de mim, mas felizmente muitos jovens me pedem opinião. Se isso para si é considerar velho… (risos).

Falo no sentido de alguém que tem conhecimento para passar aos outros.

Sim, isso acho que tenho, ou vou tendo. O objetivo é ajudar a fazer bem, não é por eu saber muito ou ser o sabonete Lux. Não tem a ver com isso, tem a ver com a ajuda e tentar transmitir aquilo que me transmitiram a mim, e aquilo que vou aprendendo e saboreando. O que é ser humano? É ser solidário com o outro, que tem as mesmas falências e carências do que nós. É mais fraternidade do que solidariedade.

Tem sempre realçado que este é um trabalho a três. Qual é o peso do João Paulo Esteves da Silva e do Jarrod Cagwin no álbum?

Sou o frontman, há aquela coisa de se escrever que o trabalho é meu, mas o disco não é meu. É de três pessoas: aliás, de mais. Costumo dizer que o disco é de dois portugueses, um americano e um italiano que morreu há dois séculos, que é Giacomo Leopardi. Só tem um poema, mas por ali se percebe toda a história. Esquecendo Giacomo e os poetas e compositores que estão, é um disco que três músicos, de três amigos que se admiram, cada um com a sua personalidade e mística. Cada um contribuiu no seu departamento com aquilo de melhor tinha para dar. Por isso é um disco de um trio sem nome – costumamos brincar e dizer que é um disco de um trio que não tem tromba.

Quando três músicos com carreiras tão cheias como as vossas se juntam, e apesar de serem amigos, há egos que se sobrepõem?

Não. Na arte, o ego não existe. Deixe lá ver se consigo explicar… Eu sirvo a música, não quero que ela me sirva. É evidente que ela depois me retribui, com o pão para pôr na mesa, para pagar a escola da minha filha, o meu carro. Mas é um serviço que se presta à música, não há aqui uma questão de ego porque o Gerrard toca melhor, o João Paulo é mais isto ou aquilo. É evidente que um artista precisa de ego e de autoconfiança porque sobe a um palco e está sob um constante julgamento. Às vezes julgam aquilo que não importa nada, mas é por isso que um artista precisa de uma determinada força do eu. Tenho essa força e confiança porque, quando subo ao palco, sei o que vou fazer – os nervos são outra coisa. E, neste trabalho, entre nós, não houve egos.

Têm aqui poemas de Ary, do António Ramos Rosa. A língua portuguesa tem património poético único. Parece-me um exercício muito difícil, o de escolher o que se quer cantar.

A poesia deste disco foi sobretudo escolhida por mim, e o João Paulo ia-me mandando coisas, como o Atraso, outras que ele escrevia e compunha, e que tinham ou não a ver. Quando escolho um poeta não penso se ele é mais ou menos famoso, escolho porque a mensagem e a carga poética me toca. Portugal é dos países da Europa que mais poesia tem, é um país de poetas, e portanto é difícil às vezes. Depois ficaram os que tinham a ver com a história do imaginário, outro do real, e assim aconteceu.

Como fadista começou por um léxico mais popular, entretanto temos aqui já poesia de um Ramos Rosa. Como foi esta transição, quando começou a ler este tipo de poesia?

Sempre li poesia desde a minha adolescência. Tenho algumas coisas de primeiras edições, alguns livros um bocadinho caros. O único consumismo a que tenho desde cedo é comprar primeiras edições, de poetas, de filósofos, cancioneiros. De vez em quando tenho temporadas em que visito muitos alfarrabistas. A poesia sempre teve uma importância enorme na minha vida, tal como a filosofia. Tenho duas primeiras edições do Ramos Rosa, por exemplo. O Pedro Homem de Melo, o Eugénio de Andrade, o José Régio, Teixeira de Pascoaes, Cesariny, António Maria Lisboa, tantos e tantos. As palavras para mim são vida.

Consegue destacar algum poeta que o tenha acompanhado sempre ao longo da vida?

Há dois: o José Régio e o Teixeira de Pascoaes. O meu poema preferido do José Régio é a Toada de Portalegre.

Há alguma coisa de desgraçado na criação artística de um disco como este ou diria que este processo não teve nada de negro, foi sempre solar?

Há sempre um lado negro e um lado solar – só conhecemos a sombra se conhecermos a luz. Então há sempre um lado negro, assim como na vida e no ser humano.

Isto leva-nos às duas histórias que conta no disco de que falava há pouco, uma que é real, outra que é filha da imaginação. Vem-me à cabeça a imagem de dois rios com densidades distintas, como foi conciliá-los para que eles corressem lado a lado e não se sobrepusessem?

O rio da imaginação não era aproximado do real. Ele tinha breves toques do que era real mas era sempre sobre uma mulher que nunca existiu, lugares que eu nunca vi, cheiros…

Eram rios de continentes diferentes, então.

(risos) Exatamente. E que de repente tinham ligeiras coisas que o ligavam com o real, como a derrota.

Ainda não tinha 18 anos quando editou o seu primeiro trabalho. O que recorda desse álbum?

É horroroso! Não ouças, por favor. Bem, dizer que é horrível é ingratidão até. Eu era muito naif…

Então um homem que acredita no crescimento do ser humano e tem essa opinião!

Pois acredito, mas tenho pavor de ouvir aquilo, não sou capaz. Aquilo está tudo mal, está tudo errado, menos os guitarristas e a poesia, isso está certo. Neste disco há o Ary dos Santos, com o Alfama. Mas eu cantava muito alto, não media as palavras, ai… Faz parte do meu caminho, mas a minha opinião é que não vale nada.

Quantos anos depois desse trabalho teve essa opinião?

Não quero dizer que foi logo no ano a seguir, mas três anos depois senti logo isso. Aliás, seis meses depois já ouvia aquilo e dizia: ‘Ai, Jesus!’ Mas era um miúdo e pronto, era o que era.

Antes de chegarmos ao fado, gostava de falar sobre o início da sua vida. Foi criado na Ajuda. O que recorda do bairro da sua meninice?

Os carrinhos de esferas, solidariedade uns com os outros. Já havia jogos de computador mas eu não tinha dinheiro para isso e brincávamos na rua, tínhamos milhares de brincadeiras maravilhosas. Isso recordo com saudade, até. Quando vou à minha mãe ou quando passo ali lembro-me sempre. Cresci num sítio chamado Rio Seco, que tem a rua Silva Porto, que era íngreme, e depois tinha a travessa Silva Porto, que é ainda mais íngreme. E era aí que nos divertíamos: ficava um cá em baixo a ver se não havia carros e outro a descer, tínhamos uma marca para ver onde é que o carrinho de esferas parava. Também brincávamos muito às escondidas, havia ali uma espécie de furnas de pedra, tínhamos muitos sítios para correr e saltar.

Era quase uma aldeia dentro da cidade.

Exatamente. Não havia movimento, tinha as hortas de Lisboa, tinha todo esse encanto.

Era um miúdo mais calmo ou mais reguila?

Calmo. Quer dizer, não era bem calmo. Sempre fui muito comedido, um miúdo muito fechado. Sou uma pessoa que se dá, e não aparento mas sou extremamente tímido. Às vezes chamavam-me para ir brincar e eu ficava a ouvir música na rádio, ou os ciganitos vinham com a viola e ficava a cantar com eles. Facilmente passava para o meu mundo, os meus amigos ainda hoje me dizem que de vez em quando me pára a boneca, porque fico parado a olhar. Chamo-lhe a viagem na maionese. Tenho essa coisa da abstração desde miúdo, de me refugiar no meu mundo quando a conversa ou a brincadeira não me agradavam. Facilmente ficava na minha, e apesar de brincar com os putos, do que gostava mesmo era ficar à porta da taberna ver os homens falar e jogar à sueca.

Mas o que o fascinava? As conversas dos homens?

Não sei o que era fascinante, só sei que ficava preso, gostava de ouvir os velhos falar e não podia entrar, mandavam-se para a rua. Fazia muitas perguntas, ficava lá a ouvi-los falar com o meu avô e o meu tio Alberto, tinha essa maneira de estar. E os meus amigos depois sempre foram pessoas muito mais velhas.

E a sua primeira memória, qual é?

Um cheiro que não consigo descrever, não sei se é a jasmim ou alfazema. O cheiro da minha mãe, da casa.

É a primeira pessoa a quem coloco esta pergunta e que me dá um cheiro e não uma imagem, e não esperava isso de um músico.

(risos) Realmente nem é som, é mesmo cheiro.

Quando é que a música começa a ter um peso preponderante na sua vida?

Sempre teve. Desde que me lembro da minha miserável, em termos de tempo, existência, em todos os momentos houve música.

De onde vinha essa música?

Da minha mãe, que cantava, do rádio, do gira discos da minha tia, da rua, onde se cantava
com os ciganos ou não ciganos. Sempre me lembro do som.

Lembra-se da primeira vez que cantou em público?

Em público que não era família ou amigos tinha 12 anos, na Académica da Ajuda.

Foi a sua tia que o inscreveu, certo?

Sim, foi ela que disse ao apresentador para eu ir cantar. Antes disso, cantar em casa era comum. E contava anedotas muito bem.

Um tímido com queda para as anedotas.

Sim, e explico porquê: há retratos até disso. Eu não contava uma anedota se a minha tia não estivesse ao pé de mim, exatamente por essa timidez. Se estivesse num grupo sem ela, ou a minha mãe, eles bem podiam insistir que eu não contava as anedotas. Se fosse preciso até começava a chorar.

Quando começou a cantar também precisava desse apoio?

Sim, precisava sempre desse conforto que vinha das pessoas que me acompanhavam, mas mais da minha tia.

No ano passado deu uma entrevista ao Alta Definição em que contou que a sua mãe tentou abortar de si três vezes e descobriu quando tinha oito anos porque, lá está, ouvia os adultos a falar. Como é que uma criança processa ou não esta informação?

Se não houver uma conversa com essa criança, se o adulto não lhe explicar e não tentar que ela entenda, a sua interpretação será a sua interpretação, referente à sua idade e maturidade que, com oito anos, é nenhuma. É inexistente. E a minha reação foi sempre achar que as pessoas não me amavam, não gostavam de mim, que eu era um peso na vida da minha mãe, que não prestava. E foi isso que expliquei no programa. Só mais tarde consegui sublimar e perceber que não era nada disso, porque sempre estive rodeado de muito amor, por pessoas quer da família, quer fora da família, e que gostavam imenso de mim. Apoiavam-me e eu não via, porque tinha um trauma, uma dor. Não sabes explicar a dor, só sabes que te dói – ela tem manifestação, mas não tem explicação. Quando começas a perceber a sua fonte, a sua origem, tudo se começa a clarificar e aí começa a deixar de doer.

Fez esse processo de descoberta sozinho?

Sempre sozinho. Depois mais tarde, já homem, quando estive doente, percebi-o junto de amigos e terapeutas, mas antes, fundamentalmente, o que me ajudou foi a leitura da filosofia e da poesia.

Chegou a falar disto com a sua mãe?

Falei, claro. Quando atingi uma determinada maturidade e tive um vislumbre daquele problema falei com ela, que me contou tudo o que se passou. E hoje em dia está completamente resolvido, sanado.

Ela não ficou triste de trazer este assunto a público?

Não porque ela própria já tinha falado. Nunca contaria coisas que soubesse que a iam ferir ou magoar. Ela também tem isso resolvido, mas às vezes ainda vem com a conversa e diz ‘desculpa’, e eu ‘oh, mãe, vá lá!’. Também é um bocado chamada de atenção para eu lhe dar miminhos (risos). Mas há muitas coisas em relação ao meu pai que não conto e jamais contarei, porque ele já não está no mundo, não se pode defender e eu não posso resolver-me com ele. Portanto, vou protegê-lo, porque independentemente de tudo, o meu pai e a minha mãe são os melhores pais do mundo.

E que lhe deram, além da vida, a música, o que no seu caso não é de somenos.

Sim, da minha mãe herdei a música, do meu pai a curiosidade e a facilidade em falar. Ele era um homem de fala fácil, que tinha poder de lógica e argumentação, era um homem bom de se conversar. A inteligência não herdei.

 

Quais eram as profissões dos seus pais?

A minha mãe era preparadora técnica de medicamentos de segundo grau, a minha tia era colega de trabalho e estava um grau acima dela. O meu pai, quando eu era miúdo, trabalhava numa fábrica de aromas, que fazia aromas para a Iophil, dos iogurtes. A fábrica era no Rio Seco, e lembro-me de ir para lá em miúdo e havia aquele cheiro do ananás que era uma coisa maravilhosa, e a dos primeiros iogurtes de banana, santíssimo, era ótimo! E aquilo era feito no laboratório e depois em cubas industriais, e o meu pai tratava disso.

Então comia montes de iogurtes!

Tivemos a sorte de ter alguns, mas só alguns, porque ali só se fazia o aroma, o iogurte era feito depois noutro sítio. Às vezes vinham iogurtes e nós comíamos um ou outro, mas não era assim à farta (risos). Depois, quando se separou da minha mãe, o meu pai foi para a construção civil, onde trabalhou até morrer.

Que veio a acontecer em 2012. Já contou que sentiu muita mágoa por não falar com o seu pai na altura em que ele morreu. Quer deixar o seu conselho, como um filho a quem aconteceu isto, a outras pessoas que possam estar a passar pelo mesmo?

O conselho é ter compaixão. E lembrarmo-nos sempre que o nosso pai e a nossa mãe são seres humanos, erram, falham, e há que aceitar isso e perceber. Aprendi isto com Epiteto, que num livro fabuloso que aconselho toda a gente a ler e a ter na mesa de cabeceira, ele diz: «Lembrai-vos, quando beijais a vossa mãe ou os vossos filhos, que beijais um senhor humano». Isso significa que eu ou tu, por muito bons pais que sejamos, vamos falhar. Somos passíveis ao erro, temos falências. E toda a gente que tem estes problemas deve lembrar-se sempre disto e, logo que possa, converse. E exponha o que sente, mas não incutir a culpa e fazer o outro diminuir-se porque é pai ou mãe. É tentar explicar que isto ou aquilo nos feriu. Tenho esse problema, salvo seja, com a minha filha. Ainda há pouco tempo fomos passear o cão durante duas horas ao campo e conversámos. Disse-lhe que ela tinha que me dizer: «Se achas que sou impetuoso contigo e prepotente diz-me, e eu aí posso-te explicar porquê. Se te disse algo que te magoa, tens que me dizer: Pai, não digas isto que me magoa. E eu vou ter que te dizer que só o disse porque 20 vezes antes te disse para fazeres determinada coisa. Nada na vida existe sem causa e efeito, e eu explico-lhe isso. O conselho que lhe dou é sempre falar, seja de sexo ou de drogas. Com certeza de que se o pai ou a mãe não sabem do assunto, vão procurar saber. Isto com a certeza de uma coisa: não há filhos perfeitos nem pais perfeitos.

Aprendeu isso sendo pai ou como filho?

As duas coisas. Bom filho és, bom pai serás, assim o fizeres, assim o acharás.

Quando era jovem foi estudar para Torres Novas, para o colégio diocesano Andrade Corvo. Como se passa da Ajuda para aqui, que é de onde suponho que venham todas as referencias bíblicas que tem usado?

(risos) Fiz muitos disparates e o meu pai não conseguiu resolver nem com pancada nem com castigos, e a maneira que ele arranjou – bendita a hora em que o fez – foi pôr-me nesse colégio em regime de internato. E foi ótimo, ótimo. Por um lado, tive pena de não ter ficado mais tempo, por outro lado, se tivesse ficado a minha vida não seria agora a mesma coisa. Uma das coisas básicas que aprendi cedo foi que quando escolhes um caminho não deves ficar a pensar no outro.

Esteve lá quanto tempo?

Há partes da minha vida que apaguei e há outras que foram todas tão rápidas que não posso precisar, mas julgo que foram uns dois ou três anos. Já voltei ao colégio, por causa de um programa, e já não havia os registos. Deu-me um dó no coração porque a diocese vendeu o espaço e aquilo hoje está tudo ao abandono.

Como era o dia-a-dia no colégio?

Era um regime de internato com regras, tínhamos disciplina. Desde a hora do levantar, fazer a cama, depois tomávamos o pequeno-almoço. Era um colégio da diocese, havia um edifício com irmãs, não me lembro da ordem, mas lembro-me que a disciplina e o ensino eram ótimos.

Continuou a cantar enquanto esteve no centro?

Sempre. Pediam-me para cantar nos intervalos, na festa da escola. Havia um professor que tocava viola, uma vez fizemos uma festa no jardim. Era um jardim lindo de morrer, sempre todo bonito com as roseiras e as sebes a fazer desenhos, tinha uma fonte, agora quando fui lá e estava tudo uma miséria. Mas nessa festa eu cantei ‘Lisboa não sejas francesa/Com toda a certeza…’. Lembro-me perfeitamente disso. Foi um tempo tão bom, gostava tanto daquelas pessoas, do padre Manuel Alves.

Vinha a casa aos fins de semana?

Sempre. Vinha às sextas, e voltava aos domingos ou às segundas de manha, às 6h20. Apanhava o expresso ali na Casal Ribeiro.

E era bom voltar a casa?

Às vezes era, outras não, mas eu tinha sempre o anseio de vir para casa porque a minha tia levava-me para os fados, para aqui e para ali. Íamos para o Bairro Alto, ou para os Ferreiras, ou para Alfama, ou para coletividades, dependia.

Tinha alguma alcunha?

Tive várias! O Gordipampas, depois O Fadista. Hoje em dia tenho várias que adoro: uma delas é o Ricarabe, por causa do gosto pela cultura mediterrânea e árabe. Já tive outras como a Popota, que eu acho um piadão, a Galinha Gorda.

Tudo alcunhas em desuso com a sua nova imagem.

(risos) Pois! Mas tive mais alcunhas! O Pisa Papéis, essa ainda não percebi porquê, talvez porque nada voasse ao pé de mim. Lembro-me ainda de outra: o Fadista Incontornável, que era impossível dar a volta (risos). E o Godzilla! Adoro-as a todas, não tenho problema nenhum com isso! Isto porque também sou tramado a pôr alcunhas e até sou um bocadinho mais mauzinho.

Voltando aos seus tempos de colégio: Nunca lhe passou pela cabeça abraçar o caminho sacerdotal?

Sim. Foi a mensagem do Evangelho, foi o encontro com aquele homem maravilhoso, aquela criatura incrível, o padre Manuel. Senti alguma vontade porque me identificava tanto com a mensagem de Cristo, com toda aquela beleza e profundidade, com toda aquela coisa, e houve uma altura em que disse que queria o sacerdócio. Mas o senhor padre, sábio, disse: ‘A tua missão também é do divino, mas não é aqui, é na música’. Mas ainda estudei, fiz algumas coisas, mas depois depressa se percebeu o meu caminho.

Foi sempre transpondo estas coisas da sua vida para a forma como encarava a música ou houve sempre uma separação entre o artista, o criador, e o homem?

Não é possível. Tudo tem uma ligação. E profunda. E forte. Porque não é possível a criação sem humanidade. Quando digo isto é no sentido de não ser possível a criação sem vida, sem cheiro. Não é possível a criação sem dor. Não é possível a criação sem solidão.

Fala no geral ou no seu caso?

No meu caso. Há pessoas que dizem que se inspiram se estiverem num café com muita gente, para mim é preciso a pessoa estar dentro de si e ouvir a voz do silêncio. O silêncio tem uma voz, que fala connosco.

As experiências então que foi passando, a depressão que sofreu, a tomada de decisão de perder tantos quilos…

52!

O que queria perguntar era se retirava proveito dessas coisas para a sua música.

Sempre. Não sei bem como é que as coisas da música acontecem, às vezes imagino que andam no ar e me tocam e que eu tenho capacidade de as apanhar. No fundo é isso. Tudo a mim me serve para refletir, para pensar. Penso sempre ‘que lição é que tenho que tirar disto’. Às vezes isso, por um lado, é um bocado chato, porque depois perco algumas coisas da vida prazerosa, o que nem sempre é mau.

Depois deste álbum que não é de fado, da sua mudança profunda de imagem, acha que é um homem, como canta, que ‘tem a vida toda por inventar’?

Sim. Hoje e amanhã, a vida está sempre por inventar.

Podemos esperar no regresso um disco de fado?

Não sei. Sabes, vivo livre. E liberdade não é fazer aquilo que se quer, é fazer aquilo que te faz bem a ti e, fundamentalmente, aos outros. E neste aspeto vivo livre e sei que o que estou fazendo é por bem. Bem para mim, e sei que este disco fará bem a muitas pessoas quando o ouvirem. Mais não seja para dizerem: ‘Vou beber um copinho que pôs-me bem disposto’. Por isso não sei: se me apetecer faço um disco de flamenco, ou faço um disco de folclore.