Agustina, a nossa Maria Antonieta

A morte de Agustina foi como uma última dádiva aos mortais: de súbito, purificou-se, e foi-lhe perdoado tudo, até a obra, a soberania de uma autora que nunca mendigou a atenção do público.

Mais além do tributo, se nos atrevermos a adoptar a mordaz perversidade que Agustina tanto cultivou, poderemos ler nas tão extravagantes manifestações de apreço que rodearam a sua morte uma espécie de apoteose. Se no seu casamento com Alberto Luís, Agustina se vestiu de negro, ao despedir-se foi vestida de branco, e o país fez dela, por fim, a sua noiva, com o túmulo a servir de altar a esta celebração. 

Um pequeno país desembaraçava-se, enfim, de um dos seus mais persistentes mitos. Uma presença que lhe lembrava uma ancestralidade inquietante, um saber tumultuoso com origem em raízes hoje um tanto ignoradas, mas que não deixam de alimentar uma percepção ulterior das coisas.  E mesmo se não levamos o cinismo ao ponto de duvidar que, uma a uma, as personagens tenham sido sinceras, reconhecemos na sua afeição aquele lado teatral que a própria Agustina não desdenharia, mas podemos ler este acontecimento como se se tratasse da cena de um romance, e permitirmo-nos assim interpretar a sua «firmeza oculta», e ganhar o balanço de uma consciência lúcida ao seguir os movimentos que nos são descritos.

Ao reconhecer-lhe o génio, esse reconhecimento não era a constatação de quem se prepara para enfrentar a obra que nos deixou, mas parecia mais um último acto de contrição diante de alguém que o país não quis nem podia engolir. Esta mesma cultura que agora exalta a virtude insubmissa de Agustina, sabe como ela pagou o preço, sendo catalogada como «difícil», e, logo, ignorada. «Ter graça vale mais do que ter fama», dizia ela, e o certo é que toda a celebridade de que gozou veio da imensa graça com que actuava no plano público, sem deixar de ser desafiadora e provocante, atraía uma audiência mais vasta, sabia ser a actriz que usa a coqueteria para prender os olhares. Mas nos livros a graça era outra, aquela que, se faz rir o leitor, também se assegura que ao riso sucedem as dores, como se a alma lhe crescesse. 

É precisa uma confiança desastrosa para se ser um autor desses que superam a própria época, de tal modo que todo o reconhecimento que se obtém soe como uma forma de absolvição dos pecados da obra. Num tempo em que a cultura tinha de contender com a urgência de satisfazer as pretensões de um público, enquanto todo o elitismo era castigado, Agustina permaneceu leal aos seus intuitos, naquela plenitude avassaladora. «Afinal os que dizem que sou difícil de ler não passam de poltrões», disse na sua célebre conferência em Granada, em 1987, adiantando que «felizmente esse número tem diminuído muito, ou então cada vez mais se envergonham de se mostrar». E logo depois de dar a estocada, ensaia um belíssimo passo, para reconhecer a dignidade da besta: «Grande parte do êxito de qualquer talento depende da vergonha em parecer ignorante ou rude se não o compreender», e, assim, conclui que «a fama faz-se com o amor de poucos e o cepticismo silencioso da maioria».

Quererá isto dizer que a imensa homenagem que marcou as exéquias de Agustina sinaliza um triunfo da minoria face ao cepticismo da maioria? Talvez, pelo contrário, seja o cepticismo que verdadeiramente levou a melhor. Como Agustina notou noutra das suas intervenções públicas, «os tempos tornaram-se falsos para o criador; vulgares para aquele que deseja ter esperança, sendo ela legítima ao que desespera». Ela via o empobrecimento de um tempo marcado pela indecisão, e percebeu que vivíamos um período de interregno, de desconfiança na medida em que a razão fazia o homem envergonhar-se e, até, combater os seus instintos. A ardorosa intuição parecia não ter já lugar no mundo, nem, muito menos, a colérica indefinição que torna os homens ameaçadores ao olhar dos deuses: «Não há hoje desespero, mas queixas; não se elevam estas aos céus e já não há quem injurie os deuses», vincava, lembrando que «os livros que nos legaram os antigos eram livros que nos muniam de esperança, porque saíam da forja do desespero».

A escrita desta grandíssima autora comungava de muitos dos princípios e noções que uma era profana procurou vencer, como se se tivessem tornado obsoletos. Mas para ela a escrita foi sempre esse desdobrar do entendendimento ao ritmo dos tambores de guerra dos homens. «Tudo são tácticas de guerra, e não sei se até ‘no estado de graça’ de que fala Inácio de Loyola, não haverá um estado de guerra que foi substituído por outra obsessão. Sem obsessão não há obra que valha», frisa Agustina, explicando que «ela alimenta o mistério do homem e experimenta a sua realidade».

Mas falemos da obra, dos romances, do seu tão calculado e assombroso sentido da «desproporção». Nestes últimos dias, recolheram-se as cornetas que soam no campo de batalha e vieram os inanes instrumentos de cordas. Repetiram-se os lindos disparates que vão bem com o incenso e que, se puderem encantar, podem bem prescindir de perturbar a consciência. Falou-se nos defeitos dos romances de Agustina, nessa sua condição de prevaricadora, desfeando o ideal de harmonia para perseguir as suas obsessões, deixar que a estrutura cambasse ao enxertar a narrativa de um rasgo sentencioso. Mas se houve oportunidade de reconvir e agora enaltecer «a luxúria aforística» da autora, a sensação que se tem é que perdemos o passado, e vimos degenerarem todas as convenções, mas também não alcançamos a insolência necessária para criar algo de novo.

Certa vez, Agustina definiu-se falando na sua «incerteza apaixonada». Anos mais tarde, explicou que a contemplação do mundo nos devolve constantemente a um estado de incerteza, o qual só se supera recorrendo à paixão. Se se diz que Agustina estava em diálogo com os grandes autores oitocentistas, não deixava de ter a lucidez desesperada de um autor moderno, e partilhava com Virginia Woolf a noção de que a escrita modernista é apenas um progresso rumo ao fracasso porque a vida resiste a ser dominada pelas palavras. Assim, quando Woolf implora aos seus cépticos leitores que «tolerem o espasmódico, o obscuro, o fragmentário, o fracasso», percebemos a mesma frustração que levou Agustina noutra entrevista a esta reclamação: «Querem atribuir à escrita aquilo que não atribuem à própria vida. Os meus livros são mais reais que essa realidade engarrafada que nos é transmitida».

Muito cedo soube que o êxito fácil não lhe interessava, do mesmo modo que de nada lhe poderiam servir «as opiniões, os favores, o agasalho da tertúlia e o calor da insubordinação, dos injustiçados, dos paladinos da razão». Como explicar isto a um público que já não espera milagres da literatura, e se ri e mofa do mais elevado grau de aspiração? Ela ambicionava, de facto, produzir milagres. «Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de integração social profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração (…) Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.»

Escrever para agradar a um público é, afinal, ceder ao consolo moral que cada época busca nos seus divertimentos. Mas Agustina equipara a escrita ao desejo de «entrar no coração das pessoas e beber-lhes o sangue, avançando sempre, criando enredos e fazendo saltar os personagens das páginas». De outro modo, a escrita não é mais do que expandir o território físico, apenas para semear imaginariamente novos túmulos. Ora, a componente teologal que inspira a sua obra fica clara quando nos diz: «Há pouca gente que perceba que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se tem encontros com Deus. Eu perguntava: ‘lutar com o Anjo, o que significa Jacob lutou com o Anjo e ficou aleijado para sempre. Esse aleijão é a pessoa que tem uma ideia sobre a sua existência na terra e lhe dá forma pelas palavras, rios de palavras, rios de incertezas profundas».

Com a irradiação da sua consciência, ela mostra-se um génio perdulário, desfilando. E a nota torrencial nela não é um modo, mas o próprio método, o de uma consciência arrasadora, de um rio que corre com uma pressa animal e que causa tonturas a quem assiste das margens a essa debandada. Ler Agustina é tomar gosto pelo esforço de não se deixar afogar, ficando sempre exausto. É uma prova de resistência, pontuada por lancinantes momentos de clareza. A trama é apenas um modo de rasgar caminho através do mundo, e dá-lo a sentir. Ao invés de uma razão só, dando nós ao longo da trama, o seu regime é a dispersão.

Oferece-nos a possibilidade de ver o mundo pelos olhos da mosca, apreciando-o com o alcance de um deus. Poucos autores no seu processo – e sabemos como o seu metabolismo era acelerado, como escrevia naquelas folhas enormes com a sua letra miúda, adivinhando as linhas, e que quase não corrigia nem riscava nada – destapam a panela onde a criação foi cozinhada como faz ela e dão-nos o odor penetrante de todo esse cuidado. 

Se pudermos supor que Deus teve ajuda na cozinha, Agustina terá ajudado a apurar o tempero. E isto com aquele seu dom para a mansa profecia, a que não adianta demais nem fica para jogar às cartas com a intriga, com o prazer de estender o fio que, narrando, dá corda a esses fundos mortos da História, esses lugares e figuras que ficam enterradas na sua mudez, mas que, se chamados a testemunhar, falam com a gravidade de quem entrega à palavra o seu destino. Com tudo isso ela tratava este país com uma familiaridade imensa, e que lhe permitia ser bruta de uma forma quase carinhosa.

Estas coisas não se podem entender primariamente. Toda a iluminação arrisca um desequilíbrio em que se passa para lá do que é comunicável. Por isso, ela se ria quando, na tentativa de a classificarem, diziam que era iconoclasta, e retorquia que era «uma maneira de me sentirem evadida das ideias fixas, como quem se evade da prisão».

Agustina irá continuar tão difícil como dantes. Como sempre a sua prova irá exigir demais para a maioria dos leitores, que se sentirão excluídos, e terão de justificá-lo, voltando o seu juízo sobre ela, para a denegrirem, mesmo que afectivamente. Ela continuará a defender o artista na sua «missão imprecadora», e é natural que choque e aflija o público que hoje se julga não só no direito de aceder à cultura, de compreender e até mesmo ‘dominar’ a arte do seu tempo. Curiosamente, não encontra um simétrico dever de educar-se ara poder desfrutar dos exemplos artísticos mais exigentes, e daí, ou bem que cede à sonolência, e se desinteressa, ou milita no ressentimento devorador que leva o público a exigir a cabeça do artista ensaiando revoluções mesquinhas, vendo por toda a parte a gulodice zombeteira das Marias Antonietas. 

Nada ultraja mais a convicção do público do que a soberania das obras que elegem uma minoria, e se recusam a vulgarizar-se. A obra de Agustina evidentemente não está assim tão interessada em agradar, em mover-se na direcção de uma mais vasta audiência. E não só não abdica dos seus valores, como ainda cultiva uma nobreza do pensamento, não se deixando desmoralizar pelo miserabilismo reinante na cultura. 

Agustina é a nossa Maria Antonieta a quem o público não conseguiu, apesar de tudo, cortar a linda cabeça. A sua inteligência cumpria um sinal de ostentação num tempo em que os escritores adoptavam um folclore inócuo, entravam nessa ficção de endeusar tudo o que fosse desgraçado, ao passo que Agustina acolhia nos seus romances as mulheres que, sendo embora vulgares, têm um «pacto com o sobrenatural quotidiano». Ela chegou a intuir o terrível vazio que marcaria o século XXI, e disse que agora o homem seria forçado a encarar a vida sem comentário, «sem culpa que o inspire e sem compaixão que o mova». E soube ler os gestos de um público incapaz de corresponder ao momento, e que se deixaria arrastar, com uma convicção encenada. «É terrível dizer-se isto e sobretudo dizer isto com convicção: estamos a entrar num século vazio de culpa e, naturalmente, esterelizado a ponto de a piedade ser abolida.»

Identificado essa drama próprio dos tempos de indigência, num texto dirigido ao frondoso castanheiro da sua casa, na Rua do Gólgota, Agustina parece ter pressentido os temores que abalam hoje até a nossa convicção sobre o que sobreviverá nas próximas décadas. «Pergunto às vezes ao castanheiro de Gólgota se ele vai durar para além da agressão ao ambiente, mas, como nao entendo a linguagem das árvores, fico sem resposta. Conheço, é verdade, certos princípios do esoterismo antigo, como o que diz que Deus é inacessível à nossa razão mas não ao nosso amor. Todos os objectos contêm um sentido para além das aparências. Talvez seja preciso que o deserto volte para criar homens fortes e sublimes. Nesse caso a natureza, na sua aparência doce e protectora, desaparecerá para dar lugar à radical insegurança do deserto, onde a liberdade pessoal consiste nos nossos queixumes e nas nossas preces. O castanheiro do Gólgota pertence à sociedade da honra, a menos má das sociedades imperfeitas. Respira nobreza e abundância, talvez não por muito tempo. Mas a criação não é obra do tempo. É fruto da acção dos homens e do espírito que sopra onde quer.»