Cristina. O amante da Rainha Horrenda

Cristina da Suécia repelia os homens,conta-se. Todos menos um: Antonio Pimentel del Prado, fundador da Ordem de Amarante. Ainda hoje, a maior condecoração sueca leva esse nome: resta saber se de Amarante se apenas de amarante…

Diz a lenda que, quando nasceu, no dia 18 de dezembro de 1626, era um bebé tão horrendo que seu pai, o rei Gustavo Adolfo da Suécia, mandou dispararem uma salva de 21 tiros de canhão absolutamente convencido de que não havia a possibilidade de não ser um rapaz e queria comemorar ter tido um herdeiro. Não foi rapaz. Andou lá perto. Em muitas coisas da vida. Até nos amores, mas já lá vamos.

Falei em lenda e a palavra não vem a despropósito, bem pelo contrário, já lá vão uns séculos bem contados e, por falar em contar, quem tem contado esta ao longo dos tempos tem-lhe dado versões divagantes, como é costume. Mas, enfim, quando a história é boa e há factos que a desmentem, nada como contrariar os factos, já dizia o Nelson Rodrigues, não se perca é nunca uma boa história só por ela não ser verdadeiramente História.

Mas vamos, primeiro, então aos factos: quando Cristina veio ao mundo, enrugada e feia como a natureza a expeliu do ventre materno de Maria Eleonora de Brandeburgo, Gustavo seu pai estava metido em sarilhos por via da importância do seu envolvimento na Guerra dos Trinta Anos, um conflito que opôs a Suécia e outros estados protestantes da Europa aos Habsburgos católicos do Império Austro-Húngaro. A teia de relações era de tal ordem abstrusa que o reino da Suécia precisava rapidamente de um pretendente ao trono sob o risco de, após a morte do grande Gustavo Adolfo, que ganhou justamente o cognome de Magnus, passar a fazer parte da Polónia.

Desta forma, tivesse ou não um fácies de apavorar hipopótamos, Maria Cristina Vasa foi uma bênção. O porquê de ter sido confundida com um rapaz teve diversas interpretações: excesso de pelo; nariz esborrachado em forma de focinho; hermafrodita. Com o desgosto, a mãe, que era de frágil constituição mental, entrou numa espiral de paranóias que a conduziram ao extremo do histerismo. Recusava-se a olhar sequer para a recém-nascida que apelidava de «monstro». O pai, geralmente distante, nas suas tarefas militares, de feitio mais cândido, largou a sua sonora gargalhada e terá dito: «Vai longe, a miúda. Enganou-nos a todos». E mandou educá-la como se fosse um príncipe.

Maria-rapaz

Cristina desde cedo revelou um interesse sexual abundante, tanto por moços como moçoilas da corte. Com a morte do pai, em 1632, foi fortemente preparada para lhe suceder sob os auspícios de um homem firme e determinado em mantê-la o mais longe possível das perniciosas influências maternas: o chanceler Axel Oxenstierna. Entretanto viúva, Maria Eleonora perdeu de vez a cordura: recusou-se terminantemente a permitir as exéquias do marido e manteve o cadáver de Gustavo Adolfo num esquife aberto, numa sala com as janelas tapadas por cortinas grossas de veludo negro e iluminada apenas por uma lâmpada de azeite.

Cristina, por seu lado, e a despeito da preponderância de Oxenstierna, provou que era bem mais do que apenas uma rapariga feiosa. O Deus no qual ela acreditava, na sua infinita sabedoria e por entre insondáveis desígnios, atribuiu-lhe uma fisionomia medonha mas um cérebro nas mais perfeitas condições e uma capacidade de análise bem afirmativa o que, num instante, a pôs em confronto com o chanceler. Entronizada em 1650, depois de um badalado caso amoroso com uma belíssima jovem de 15 anos chamada Ebba Sparre, tratou de o desconsiderar de várias formas. Primeiro recusou-se a assumir um noivado com a intenção de gerar herdeiros. Em seguida, ao contrário da vontade de Axel, assinou o Tratado de Paz de Ostenbruck, terminando as três décadas de conflito. Finalmente, o seu espírito voluntarioso empurrou-a para a grandiosa ideia de uma Estocolmo digna das tradições renascentistas, capital cultural do norte da Europa, e dasatou a gastar o que restava dos depauperados cofres da coroa: quadros, livros, esculturas, tudo o que pudesse fazer da cidade do Báltico um lugar onde estudar e viver sob uma aura de crescimento constante de ideias e ideais fosse realidade.

Chamaram-lhe a Semiramis do Norte. O próprio Blaise Pascal, que sabia muito sobre as razões do coração, ofereceu-lhe manuscritos. Deixou-se encantar pelo teatro e foi atriz. Fez de deusa Diana em peças da autoria de Georg Stiernhielm; chamou à corte o coreógrafo Antoine de Beaulieu, que fez o que pôde para a fazer caminhar com a elegância ao alcance de uma mulher que tinha um ombro mais alto do que o outro; mandou um navio com duas mil obras a bordo para convencer René Descartes a viver em Estocomo, mas o filósofo detestou-a, detestou o frio, e voltou para casa com uma pneumonia fatal.

A Rainha Hedionda mudava a face do país, embora não conseguisse mudar a dela. Em seguida, fartou-se. Quatro anos de rainha deram-lhe cabo da pachorra. Abdicou em no dia 6 de Junho de 1654, abandonou as ideias luteranas, declarou-se católica e foi viver para Roma como convidada do Papa Alexandre VII que a exibiu como uma conquista da Igreja em troca de substantivas regalias.

O filme

Hollywood dedicou-lhe um filme em 1933. Realizado por Rouben Mamoulian, tinha Greta Garbo como protagonista. Garbo, apesar do italiano garbo, não se chamava Garbo, mas Greta Lovisa Gustafsson, e nasceu em Södermalm, uma das ilhas de Estocolmo por vezes apenas chamada de Söder. Estudou na Real Academia de Artes e tornou-se figura eterna em a Saga de Gösta Berling, peça baseada na obra da prémio Nobel da Literatura, a também sueca Selma Lagerlöf. Depois foi para a América ser Garbo e assim ficou até repousar para sempre no cemitério de Skogskyrkogården. Tudo muito sueco, como se pode ver.

Mas o filme trouxe, com ele, a continuação da lenda. Repulsiva pode ter sido Cristina para muitos homens mas não para Don Antonio Pimentel de Prado y lo Bianco, um nobre espanhol natural de Palermo, cavaleiro da Ordem de Santiago e embaixador da coroa espanhola em Estocolmo ao seu tempo de rainha. Os amores terão sido escaldantes como as tardes de Cádis, cidade da qual veio a ser governador, mas se Don Antonio era ou não descendente de uma abastada família portuguesa de Amarante, eis algo que não parece ser totalmente um facto. Que teve sobre Cristina o fascínio suficiente para que ela fizesse da Ordem de Amarante a mais alta condecoração da Suécia, originalmente só entregue a cavalheiros que se mantivessem castamente solteiros, é certo. Que foi por ela entregue a 15 especiais cavaleiros que consta terem partilhado o leito real, já tão certo não é, embora os nomes estejam listados e registados. Quanto a amarante, a palavra é grega: significa aquele que não desmerece. Mais um facto: Amarante não só não desmerece; merece! A cidade, claro!