O que faltou no 10 de Junho

No dia de Portugal falou-se muito das pessoas mas falou-se pouco do país

Discutiu-se muito o convite do Presidente da República a João Miguel Tavares para fazer o discurso principal do 10 de Junho.

Teria algum sentido convidar um ainda jovem colunista de jornal, sem um grande currículo para lá dos escritos semanais e a participação num programa da TV, para fazer o discurso ‘oficial’ no dia ‘mais importante’ de Portugal?

É nestas coisas que Marcelo Rebelo de Sousa tem graça.

Ele conserva a frescura e a ‘irreverência’ bastantes para fazer surpresas quando menos se espera.

E esta surpresa, para lá da falta de currículo do palestrante, tinha uma ‘maldade’ suplementar: João Miguel Tavares é dos poucos colunistas que não mostram medo de afrontar o poder socialista, tendo sido mesmo processado por Sócrates.

Portanto, pô-lo a falar no 10 de Junho, com o primeiro-ministro a assistir, era uma provocaçãozinha.

Que, aliás, Costa não deixou de notar, mantendo durante todo o discurso uma expressão fechada.

 

O discurso não desiludiu, pelo contrário.

Teve recorte literário – mas despretensioso, feito de palavras simples.

E, além de formalmente bonito, exprimiu ideias e sentimentos.

Falou de pessoas concretas, não se limitou a generalidades.

Falou do avô, «que tinha uma casa de pasto no fundo da rua de Elvas e oferecia um prato de sopa a quem não tinha dinheiro para pagar uma refeição»; falou dos sogros, «que tiveram de fugir de Moçambique em 1975 e reconstruir toda a vida em Portugal com seis filhos para criar»; falou de «três mulheres que viajaram desde o outro lado do mundo para acolher um bebé nascido em Moçambique e fazê-lo crescer numa pequena aldeia da Beira Interior».

Falou das famílias com dificuldades, das perspetivas dos jovens, dos emigrantes e dos imigrantes.

E não o fez com lamechices – fê-lo com emoção.

Foi, portanto, um belo discurso.

 

Um discurso que falou da dignidade do trabalho.

«Se alguma pessoa emproada vos perguntar pelo vosso currículo, digam-lhe que currículo tem tanto o académico que decide dedicar a sua vida ao estudo como o pai que decide dedicar a sua vida aos filhos».

Um discurso que falou da desigualdade de oportunidades.

«Cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas».

Um discurso que falou de esperança e desilusão.

«Esta perda de esperança rapidamente se transforma numa forma de cinismo. Achamos que temos de ser pessimistas para sermos lúcidos. Que temos de ser eternamente desconfiados para não sermos comidos por parvos».

 

Foi, repito, um excelente discurso.  Mas onde falhou?

Em todos os países, há duas dimensões: a dimensão das pessoas e a dimensão da nação.

As pessoas são todas importantes, devem ter oportunidades iguais, mas essa é a dimensão individual.

É a dimensão, por assim dizer, ‘egoísta’.

É o que cada pessoa pode alcançar.

Mas depois há a dimensão coletiva.

Como Kennedy dizia, «não perguntes o que a tua pátria pode fazer por ti. Pergunta o que tu podes fazer por ela».

Ora, Tavares falou sobre o que o país e os políticos fazem ou não fazem por cada cidadão – mas não falou do que o cidadão pode fazer pelo país.

Pelo contrário, rejeitou essa dimensão.

Recomendou, mesmo, «menos exaltação patriótica e mais paixão por cada ser humano».

 

Acontece que, para cada cidadão perceber a importância do seu trabalho, é preciso que saiba o que o país espera dele.

E é esse o problema.

Que país querem os que nos dirigem?

Um país mais europeu ou apostando fortemente na relação com os países de língua portuguesa?

Um país mais continental ou mais marítimo?

Um país concentrado no litoral ou lutando contra a desertificação do interior?

Um país preocupado ou despreocupado em relação à queda da natalidade?

Um país montado na iniciativa do Estado ou vendo os privados como força indispensável ao desenvolvimento?

 

Percebo a preocupação de João Miguel Tavares com os cidadãos, com cada cidadão.

Mas depois há outra dimensão: a integração do cidadão na comunidade, a integração da comunidade na região, a integração da região no conjunto da nação – e os objetivos nacionais.

Porque tem de haver objetivos comuns, existindo acima dos partidos, caso contrário os países andam aos ziguezagues e não chegam a lado nenhum.

Ora, o que temos visto nos últimos anos é uma falta de rumo.

Faz-se uma navegação à vista, centrada em objetivos eleitoralistas, de satisfação das massas no imediato mas sem uma ideia a prazo.

É tudo muito efémero, muito imediato, sem objetivos a prazo nem se perceber qual é a estratégia.

É isto que falta.

 

É claro que João Miguel Tavares não podia fazer um discurso político.

Mas faltou-lhe falar dessa dimensão nacional, do vazio que existe a esse propósito e enche de incertezas o nosso futuro.

E é exatamente essa incerteza que gera desilusão – e vai minando a democracia.

O homem precisa de pão, mas nem só de pão vive o homem.

Os Governos não existem só para satisfazer os cidadãos – compete-lhes também garantir o futuro.

E isso obriga-os, às vezes, a não agradar aos cidadãos.

 

P.S. – O discurso de JMT em Cabo Verde, em contraste com o de Portalegre, pareceu-me disparatado. Se ouvi bem, basicamente ele disse aos cabo-verdianos: «Vão para Portugal mas não aceitem andar a lavar escadas!». Ora, o que há a dizer aos cabo-verdianos (e a outros povos de emigrantes) é exactamente o contrário: «Estudem, empenhem-se no desenvolvimento do vosso país, para não estarem condenados a emigrar».