Os cães, o urso e o karma de Guterres

Por mais reportagens ou revistas inteiras sobre a terrível ameaça das alterações climáticas, por mais testemunhos e apelos de António Guterres, de Bill Clinton, da jovem Greta Trunberg, de partidos ou associações ambientalistas, o vídeo daquele urso polar em meio urbano ou aquela fotografia de cientistas dinamarqueses são muito mais interpeladores

As imagens de um urso polar vagueando por uma lixeira de uma zona urbana na Sibéria, à procura de alimento, e a fotografia de uma missão científica dinamarquesa com os trenós puxados por cães a andarem sobre água, e não sobre gelo, na Gronelândia um mês antes do que seria suposto tornaram-se virais e chocaram o mundo na semana seguinte ao secretário-geral da Organização das Nações Unidas ter aparecido na capa da revista Time de fato e gravata com água até aos joelhos a ilustrar o título: O nosso planeta está a afundar-se.

Por mais reportagens ou revistas inteiras sobre a terrível ameaça das alterações climáticas, por mais testemunhos e apelos de António Guterres, de Bill Clinton, da jovem Greta Trunberg, de partidos ou associações ambientalistas, o vídeo daquele urso polar em meio urbano ou aquela fotografia de cientistas dinamarqueses são muito mais interpeladores.

Sobretudo quando Donald Trump ignora as alterações climáticas no discurso de anúncio da sua recandidatura à Presidência dos Estados Unidos e o seu secretário de Estado Mike Pompeo diz que a redução do gelo no Ártico constitui uma ‘oportunidade’ que permite reduzir a viagem entre a Ásia e o Ocidente para 20 dias.

«As rotas marítimas do Ártico poderão tornar-se o Suez e os canais do Panamá do século XXI», argumentou Pompeo, citado pela CNN.

E esta é a resposta da Administração dos EUA quando confrontada com a redução da área de gelo do Ártico – e os dados de várias entidades oficiais norte-americanas são categóricos: a área de gelo está a diminuir todos os meses desde há décadas e entre abril de 2018 e abril desde ano perderam-se mais de 80 mil milhas quadradas de gelo, com gravíssimas consequências nos habitats naturais (que conduzem a fenómenos como a invasão de zonas urbanas por ursos polares como tem vindo a acontecer na Rússia) e na erosão costeira.

Como já se percebeu, Trump não terá no ambiente uma das causas da sua campanha para a reeleição. Antes insistirá nos indicadores de crescimento económico que marcam muito positivamente o seu mandato.

Se as sondagens o dão a perder para qualquer dos pretendentes democratas, a verdade é que já nas presidenciais anteriores Hillary Clinton também ganhava nas sondagens e perdeu nas urnas.

Tanto que, desde aí, Trump não se cansou de classificar como fake news todas as sondagens e notícias que lhe foram/são desfavoráveis ou que contrariam as suas opções políticas. Como as respeitantes às alterações climáticas. Para o Presidente americano, são tudo fake news.

Antes fossem.

A verdade é que as consequências catastróficas das alterações climáticas justificam que o secretário-geral da ONU se sujeite à imagem da Time.

O risco é real e presente.

António Guterres sempre teve preocupações ambientais e, quando trocou a política nacional por uma carreira internacional, as suas ambições passavam por um cargo associado à solidariedade para com os mais desfavorecidos e desprotegidos ou à defesa do ambiente.

Acabou por abraçar o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, antes de chegar a secretário-geral da ONU.

O cargo de secretário-geral já teve mais peso político e maior relevância na ‘governance’ do mundo. Sobretudo no tempo da guerra fria e da cortina de ferro entre os dois blocos, alinhados pela Aliança do Atlântico Norte e pelo Pacto de Varsóvia.

Nos tempos que correm, na verdade, a ação do secretário-geral da ONU é demasiado condicionada e muito menos relevante.

Salvo quando o seu titular faz uso do estatuto inerente ao cargo para fazer passar a  sua mensagem.

E, desta vez, foi o que Guterres fez com a Time.

De facto, se a história fez o seu percurso, as alterações climáticas são, hoje, uma ameaça bem mais real e global do que a corrida ao armamento ou a ameaça nuclear. E o secretário-geral das Nações Unidas tem obrigação de intervir e fazer-se ouvir.

No início deste novo século e do milénio, António Guterres demitiu-se de primeiro-ministro na sequência da derrota do PS numas eleições autárquicas e, nas palavras do próprio, para evitar que o país caísse num «pântano».

Também por isso, não deixa de ser curioso que António Guterres seja agora capa da revista Time com uma fotografia em que aparece com água até aos joelhos.

Parece ser karma de Guterres, desta vez contra o triste fado do planeta.

Em Portugal, a sua saída do Governo e da liderança do PS não evitou o pântano, como bem sabemos e ainda penamos.

No mundo, as imagens também não são as mais animadoras. Muito antes pelo contrário. Porque manda quem pode. E o secretário-geral da ONU pode muito pouco.