O padeiro Silva vai de Portalegre para Lisboa

O que deve fazer o homem comum? Resignar-se a essa condição ou lutar para ter uma voz?

Vamos supor que agarravam no Sr. Silva, padeiro de profissão, nado e criado em Portalegre, e o levavam para Lisboa, para se tornar político e fazer discursos.

O padeiro de Portalegre é agora uma figura imortalizada pela escritora Inês Pedrosa, e a ideia foi usada num programa de debate da RTP onde se discutia o discurso do 10 de Junho feito pelo presidente da comissão organizadora das comemorações, João Miguel Tavares (JMT). 

Inês Pedrosa, nesse programa, discorda da escolha de JMT para fazer o discurso, comparando-o, na falta de currículo, a um qualquer padeiro de Portalegre. Nessa longa intervenção, a comentadora discorre sobre a sua ideia de democracia, ligando-a a uma ideia de pertença: «Cada macaco no seu galho».

Descontando o tom profundamente emocional e descontrolado, mais a snobeira intelectual e social que se viu em Inês Pedrosa, eu gostaria de a confrontar com o conteúdo das afirmações feitas. Vou reduzi-las a quatro: Qual o lugar do homem comum na nossa democracia? Qual o destino do padeiro? O que é uma democracia? E a última: Para que serve um intelectual? 

O problema do lugar do homem comum é antigo – o título do presente artigo, por exemplo, é tirado da obra-prima de Frank Capra, de 1939, Mr. Smith Goes to Washington, dedicada precisamente à questão do lugar do homem comum no sistema político assente na representação. 

Resumidamente, um grupo de políticos leva Jefferson Smith, um inocente homem do interior, para Washington, para se tornar senador dos Estados Unidos. Na verdade, eles queriam transformá-lo numa marioneta, num fantoche ao seu serviço. Smith começa a aperceber-se não só da jogada mas sobretudo do regime e dos representantes que o país tem. 

E agora perguntamos: o que deve então fazer o homem comum? Resignar-se a essa condição? Confiar nos seus representantes? Ou lutar para participar, ter uma voz?

Em segundo lugar, quando falo no destino do padeiro, refiro-me à sua condição económico-social. Em Portugal, a mobilidade social é muito baixa; a pobreza atravessa em média cinco gerações, como acontece também no Reino Unido, nos EUA, na Áustria, na Itália ou na Suíça (ver o estudo da OCDE ‘Income mobility across generations’), ao contrário da Dinamarca (duas gerações) ou da Finlândia, Noruega ou Suécia (três gerações). Assusta, por isso, ouvir Inês Pedrosa defender «cada macaco no seu galho», porque significa tão-somente defender a perpetuação da pobreza. 

Ligando esta realidade à pergunta do que é a democracia, será esta então um sistema de representação em que os homens comuns, os padeiros, os Smiths deste mundo, são macacos destinados a ficar nos seus galhos, rasteiros e insignificantes? 

A escritora defendeu que seria aos intelectuais que competia fazer os discursos do 10 de junho, o que nos leva à derradeira pergunta: o que é um intelectual?

É alguém que pensa o país em geral, em todas as suas dimensões? Ou alguém que deve estar confinado à cultura? É alguém que cultiva pensamento próprio e independente, sempre crítico, não enfeudado às cores políticas, ou alguém que é partidário, parcial? 

Um intelectual pode ser independente ou serventuário do poder. Pode querer agradar ao poder político para conseguir uma nomeação, uma prebenda, uma sinecura.

O discurso de JMT, mais o comentário canhestro e simplista de Inês Pedrosa, tiveram o mérito inegável de pôr o país mediático a falar do 10 de junho. Parabéns a Marcelo Rebelo de Sousa pela presciência.

sofiarocha@sol.pt