O Titanic ocidental

Portugal faz impressão! O burlesco tornou-se assunto sério, e muitas pessoas já não distinguem a comédia da tragédia.

origens desta avaliação? várias.

esta semana estive num colóquio organizado no âmbito dos 40 anos do expresso. com a devida vénia a francisco balsemão (que merece muitos parabéns) e a mário soares (fantástico nos seus 88 anos), felipe gonzález esteve quase arrasador na sabedoria, informação e brilho que demonstrou. não sei onde terá apreendido mais: se como presidente do governo de espanha, durante mais de uma década, se como assessor de carlos slim, o mexicano que está no pódio dos homens mais ricos do mundo.

ele disse algo – que quase ninguém transcreveu – e que eu (que fui chefe do governo de portugal só oito meses e não assessoro nenhum dos homens mais ricos do mundo) tenho repetido à saciedade:

– está por fazer a regeneração do sistema financeiro a nível global, desde 2008.

gonzález lembrou as reuniões do g-20, em 2009, as proclamações feitas sobre essa matéria e os propósitos regeneradores então assumidos – mas, depois, essa meta foi esmorecendo até quase não se falar nela.

balsemão referiu-se elogiosamente – para surpresa minha, devo confessar – ao filme inside job, que aqui sugeri que fosse visto por todos que o pudessem fazer.

na sequência, felipe gonzález disse a frase do dia: «em 2008 aconteceu uma bolha financeira. a segunda está em formação e vem a caminho». verdades que nem punhos!

o titanic europeu e ocidental continua, entretanto, na sua rota. tem uma diferença para o do filme e a história que o originou: o navio não tem comandante. falam, falam, discursam, conferenciam – mas comando, zero.

o povo e os poderosos

entrementes, parece que está tudo normal. com as injecções monetárias, convencem-se de que o problema está sanado. mas não está! barack obama consegue um acordo fiscal ao bater do gongue e, no dia seguinte, aumenta o limite da dívida. e tudo continua, cantando e rindo.

como tudo parece igual, os poderosos voltaram a convencer-se de que o vão ser para sempre. e, nesta aldeia dos gauleses em que vivemos, lá vamos tendo os conflitos do costume entre órgãos de soberania, agora acrescidos em torno de disputas de ficção à volta do tribunal constitucional.

o povo vai assistindo atónito a tudo isto. no dia-a-dia, os poderosos vão maltratando as pessoas. os que não conhecem ninguém nas esferas do poder, esses, coitados, nem têm direito a nada. quem conheça – e mesmo que tenha algum poderzinho pequenino –, caso apanhe algum dos ‘colossos’ deste país, é tratado ‘abaixo de cão’.

não há horas para nada, não há educação, há risinhos nervosos, não se resolve quase nada.quem faz perguntas não ouve as respostas. está-se em reuniões e não se ouve o interlocutor porque se está sempre a olhar para o telemóvel. diz-se mal de qualquer um. proscreve-se quem ‘levar com uma pedra’ que seja…

atenção: não estou a falar do governo nem de políticos. esses, já se sabe que são ‘péssimos’. falo de outros poderosos. os que não dizem bem os ‘rrs’ e andam muito de avião.

cavaco silva e o tc

no geral, o país acha normal o que se passa com a fiscalização sucessiva do tribunal constitucional. as pessoas, como não sabem, pensam que é assim na generalidade dos países. será uma inevitabilidade, estilo má classificação no festival da eurovisão…

pois não acontece assim em mais lado nenhum. a fiscalização sucessiva veio da inspiração do mfa quando a constituição foi elaborada. ao mesmo tempo que se consagrava o conselho da revolução como fiscalizador e garante da constitucionalidade das normas, instituía-se, no art. 281.º da lei fundamental, que o presidente, o presidente da assembleia, o primeiro-ministro, entre outras entidades, podiam requerer a fiscalização da constitucionalidade. mais tarde, acrescentou-se a ‘entida-de’ representada por um décimo dos deputados.

antes de saber se o presidente pediria a fiscalização sucessiva, escrevi aqui que cavaco silva tinha optado pela via sensata de promulgar o orçamento. assim parecia…

no entanto, o caminho que eu teria preferido era o presidente requerer a fiscalização preventiva, fixando um prazo curto. para isso, seria igualmente importante o parlamento ter encurtado prazos.

cavaco silva podia ter falado previamente com os grupos parlamentares para apurar que normas queriam questionar – integrando-as depois na sua solicitação ao tribunal constitucional. o país teria poupado tempo e evitado confusões.

quando ouvi a hipótese de o presidente promulgar e requerer logo a fiscalização sucessiva, pareceu-me razoável. mas não deste modo! cavaco silva gaba-se da magistratura que exerce fora do alcance dos holofotes. podia, pois, ter procedido à integração dos pedidos dos grupos parlamentares, acordando oficiosamente um prazo com o palácio ratton.

não gosto nada, nesta altura, de criticar e aumentar o ruído que tanto nos incomoda. mas não aceito que esta desordem no sistema de governo seja aceite com naturalidade.