Um prestígio em perda (Conclusão)

A imagem que o comum dos cidadãos tem da profissão de engenheiro não tem cessado de se degradar. 

Quando os efeitos da reforma de Bolonha se fizeram sentir nas universidades, a Ordem dos Engenheiros (OE) tomou a posição correta, defendendo os cinco anos como a duração adequada dos cursos de engenharia e insurgindo-se contra a proliferação de licenciaturas de três anos. 

Admitindo que, do lado dos engenheiros técnicos, e a exemplo do que aconteceu com o ensino secundário profissional, acabasse por esfriar o desejo de equiparação com os engenheiros, tudo apontava para que, no regime pós-Bolonha, as respetivas ordens passassem a cooperar: A OE continuava a agregar os ‘velhos’ licenciados pré-Bologna, os mestres pré e pós-Bolonha (considerando estes como equivalentes aos antigos licenciados), e os doutorados, enquanto a então ainda Associação Nacional dos Engenheiros Técnicos (ANET) ficava com os licenciados pós-Bolonha, nível que melhor corresponde ao dos antigos bacharéis. Corrigiam-se, assim, e a exemplo do que se tinha passado com o ensino secundário, os efeitos nefastos da ‘unificação’, repondo o modelo baseado em duas classes profissionais de engenheiros, tradicional em Portugal e na maioria dos países europeus. Ia-se, igualmente, ao encontro do novo Quadro Nacional de Qualificações, dado que ao primeiro tipo de diploma correspondem logicamente os níveis 7 – mestrado e 8 – doutoramento, e ao segundo tipo correspondem os níveis 5 – técnicos superiores profissionais e 6 – bacharelato e licenciatura pós-Bolonha.

Infelizmente, a OE preferiu ir atrás dos números. De facto, segundo um estudo da A3ES, 85,3% dos indivíduos que entraram pela primeira vez no mercado de trabalho em 2009 com habilitação superior eram licenciados e só 7,5% possuíam mestrado ou doutoramento. Como percentagens próximas destas se aplicam, provavelmente, aos cerca de 15 mil diplomados por ano da área Engenharia, Indústrias Transformadoras e Construção, que constituem, agora, o ‘alvo’ das duas ordens, manter-se fiel aos cinco anos como mínimo de formação para ser engenheiro significava para a OE abrir mão da maioria dos candidatos a membros. Assim, em 2011, antecipando-se à publicação do diploma que constitui a OET, a OE abre as portas aos licenciados pós-Bolonha, ou seja, aos antigos bacharéis, alteração que é incorporada nos estatutos em 2015. Entretanto, a OET, persistindo na absurda dinâmica de equiparação, introduz na nova versão dos seus estatutos, publicada poucos dias depois dos da OE, a aceitação, como membros, dos licenciados pré-Bolonha e dos mestres pós-Bolonha. 

Em consequência deste novo conflito, as duas associações profissionais deixam de se falar, não sendo capazes de se pôr de acordo quanto às qualificações específicas dos engenheiros e dos engenheiros técnicos a integrar em diplomas legais, nomeadamente para o setor da construção.

Esta infeliz evolução desemboca numa situação aberrante em que a definição de ‘Engenheiro’ da OE é coincidente com a de ‘Engenheiro técnico’ da OET, os requisitos de admissão são praticamente os mesmos e, pelo menos, para o caso da engenharia civil, as listas dos ‘atos de engenharia’ que uns e outros podem legalmente praticar são idênticas.

A velha disputa pelo título de Engenheiro transformou-se numa disputa ainda menos dignificante pela captação dos novos diplomados, fundamental para o desafogo financeiro de qualquer das instituições, dado que as quotas representam mais de 80% da sua receita, pelo menos numa delas. Tudo se passa atualmente como se as ordens dos engenheiros fossem duas apenas por conveniência dos respetivos establishments, passando a liderança de mão em mão, entre os membros do mesmo pequeno círculo, ou mantendo-se, até, na mesma pessoa. Na OE dominam os engenheiros civis, especialidade (uma em doze), a que pertencem cerca de metade dos membros e todos os bastonários eleitos desde há mais de vinte anos; na OET o bastonário, por sinal também engenheiro civil, é o mesmo desde que ela existe como tal, e o mesmo dos tempos em que ainda era ANET, vai também para vinte anos.

Em consequência, a imagem que o comum dos cidadãos tem da profissão de engenheiro não tem cessado de se degradar. A essa degradação não é estranho o já referido predomínio da engenharia civil, atualmente associada no nosso país quase exclusivamente à construção e, portanto, conotada com os excessos que conduziram ao limiar da bancarrota e com as situações de duvidosa licitude em que agentes importantes deste setor se têm envolvido nas últimas décadas. Significativamente, uma e outra estão sob a tutela administrativa do membro do Governo responsável pelo setor da construção.

Além de pouco prestigiante para a classe profissional, esta evolução é prejudicial para a economia do país, porque a estrutura dos profissionais de engenharia com formação superior está a tornar-se indefinida e a ficar desequilibrada. Se as lideranças das duas ordens existentes não se entenderem, arriscam-se a que seja a tutela ou outros por ela mandatados a definir os perfis profissionais do Engenheiro e do Engenheiro técnico, quais os atos de engenharia que um e outro podem praticar e quais as condições de admissão nas respetivas associações profissionais. Em alternativa, poderá vir a optar-se por fundi-las numa única, que abranja uns e outros sem distinção.

É, portanto, necessário e urgente que as duas atuais ordens se antecipem e se entendam, evitando que se passe aos engenheiros um atestado de menoridade. 

Vítor Cóias

Eng. Civil, Ex-membro da Assembleia de Representantes da Ordem dos Engenheiros