A prostituta e o fidalgo

Na rua das Portas de Santo Antão, paredes-meias com o Coliseu, La Féria leva à cena no Politeama um musical histórico, montado com o seu conhecido savoir faire

Filipe La Féria é hoje no país uma figura singular. Pegou na revista à portuguesa e misturou-a com o musical americano, criando espetáculos com uma marca própria. E de há quase 30 anos para cá que enche salas, mantendo peças durante anos a fio em cartaz.

Comprou um teatro, o Politeama, e é lá que leva à cena as suas criações. Trata-se uma sala ao estilo romântico, com um espaço enorme, imponente, de grande altura, embora sem o luxo de um Tivoli, por exemplo. Dir-se-ia ser uma grande sala… de um parente pobre.

Situa-se na rua das Portas de Santo Antão, onde fica o Coliseu e que abrigava marisqueiras famosas, como a Brilhante e a Solmar, que já desapareceram. Mas lá continua o Gambrinus e outros restaurantes dignos, e a rua parece recuperar o fulgor antigo, sobretudo à custa dos turistas – que à noite enchem as esplanadas. E mesmo para quem não se quer sentar à mesa, vale a pena uma visita às Portas de Santo Antão ao cair da tarde ou à hora de início dos espetáculos… para simplesmente ver o espetáculo das pessoas.

Hoje, a rua faz lembrar as ruas alegres de cidades espanholas à hora da ceia – com gente a comer e a beber, a falar alto, a gozar a vida.

Severa é o musical que o Politeama tem em cartaz. Conta a história de um fidalgo de nome D. Francisco de Paula de Portugal e Castro, conde de Vimioso, que se apaixona por uma prostituta de um bairro pobre de Lisboa, a Mouraria, dando ambos início a uma relação que empolgará os pobres e escandalizará a alta sociedade.

Ele leva-a a cantar aos salões, onde ela põe as bocas das senhoras da aristocracia a espumar de raiva e as respetivas cabeças a andar à roda. 

O tema é o de sempre: o amor entre um fidalgo rico e uma mulher pobre. O poder e o povo. Mas a Severa nunca aceita mudar a sua natureza. Quando o fidalgo lhe promete casamento e diz que lhe mudará as maneiras, ela reage com brutalidade: diz-lhe que quer ser como é e não fingir o que não é. O fidalgo tem uma amante aristocrata, casada, que o adora – mas ele acaba por preferir a meretriz. E ela retribui-lhe o amor. Tem admiradores diversos – como um mendigo aleijado que a venera e a segue por toda a parte ou um rico proprietário rural -, mas termina sempre nos braços do fidalgo.

Ahistória  tem o epílogo trágico que se adivinha. Na sua última corrida de toiros, o fidalgo-cavaleiro é colhido e morre na arena. E a Severa acaba por segui-lo: apanhada pela tuberculose, apaga-se aos 26 anos.

Como pano de fundo do enredo, a guerra civil de 1832-34: a luta fratricida de D. Pedro e D. Miguel, os liberais e os absolutistas, a arraia-miúda e a aristocracia. 

No fundo, Severa é uma metáfora ao amor impossível entre pessoas de classes diferentes. 

La Féria conta a história com inegável mestria e grande economia de meios. Os cenários são muito simples: quase sempre apenas dois troços de escada que se movimentam no palco e se associam de várias maneiras, ocupando o espaço em largura, profundidade e altura. 

Fora isso, apenas uns panos de cena com luzes próprias ou projetadas, para dar algum ‘luxo’ ao ambiente.

O guarda-roupa é bonito, cuidado e não transmite a sensação de pobreza pindérica que caracteriza alguns destes espetáculos. É colorido e desenhado com algum requinte.

O ponto mais fraco são as vozes. Num meio artístico tão curto como o português, não é fácil encontrar pessoas que saibam ao mesmo tempo representar, dançar e cantar. Nos musicais da Broadway surgem grandes figuras, grandes nomes do music-hall. Aqui há que contar com o que existe. E ainda por cima nem todos estão sempre disponíveis, pois há as doenças e outros impedimentos. 

De qualquer modo, o savoir faire de La Féria acaba por contornar este handicap – e os movimentos cénicos, o ritmo, os bailados, o guarda-roupa disfarçam largamente as limitações e proporcionar um espetáculo de bom nível.

Uma palavra para a assistência: tudo gente com mais de 50 (ou 60 anos), na maioria mulheres. A juventude dissociou-se por completo do teatro, preferindo os concertos de música pop e os filmes de ação americanos. 

Quanto aos homens, preferem ficar em casa a ver TV – e são as mulheres que saem à noite, umas com as outras, para se divertirem.

O mundo está muito mudado!