Capitão de Abril entre sitiados do Prédio Coutinho

A demolição começou esta semana com diversos moradores em casa. Um deles, o coronel Santos, capitão de Abril. Residentes queixam-se de «bullying» de autarca do PS.

Capitão de Abril, o Coronel Santos, um dos moradores sitiados no Prédio Coutinho, em Viana do Castelo, estaria longe de imaginar que quase aos 80 anos de idade viria a ser despejado da sua própria casa – 45 anos após a Revolução dos Cravos, que ajudou a fazer. A demolição do Prédio Coutinho começou ontem de manhã cedo, tendo aquele oficial do Exército na situação de reforma sido assistido pelo INEM e pelos Bombeiros Voluntários de Viana do Castelo, devido a problemas de saúde, depois de na véspera uma sua vizinha, de nacionalidade espanhola, ter desmaiado e sofrido ferimentos cranianos.

Ambos recusaram ser transportados para o Hospital de Viana do Castelo, porque, se saírem das casas – que afirmam ser suas, motivo que os levou a recusar sempre receber as indemnizações da empresa camarária –, são automaticamente despejados, com mudança de fechaduras, por parte de VianaPolis.

Mas a ‘desconstrução’, afinal, não começou de cima para baixo, do 13º andar, já que todos os moradores dos seis apartamentos contactados pelo SOL referiram que «as marteladas estão ser centradas à volta das nossas casas, só estão a rebentar com paredes ao lado, por baixo e por cima dos nossos andares. É um caso puro de ‘bullying’ para nos obrigarem a sair definitivamente das nossas casas, após nos terem cortado a água, o gás e a eletricidade».

Usando do direito à indignação, o Coronel Santos foi o primeiro a descer de sua casa para «exigir respeito» aos agentes da PSP e funcionários camarários, recordando aos presentes ter sido já Comandante da PSP de Viana do Castelo e capitão de Abril. O oficial do então Batalhão de Caçadores 9, em Viana do Castelo – com quem Otelo Saraiva de Carvalho contou para o triunfo do 25 de Abril de 1974 – não escondia a revolta, acabando por simbolizar a indignação de todos os moradores que continuam a resistir às ordens de despejo, perante o incómodo dos próprios agentes da PSP em ver o desespero de pessoas de idade avançada sem água e sem gás, com os alimentos a subirem por cordas.
Desde então, o Coronel Santos tem-se mantido sempre no seu apartamento com a família, no Bloco Poente do Prédio Coutinho. Como o Coronel Santos, há mais dez moradores que não arredam pé das suas casas e desafiam ainda as autoridades a visitar o vizinho ‘Prédio Torto’, conhecido como Torre de Pisa. Este prédio, ainda que mais recente, cedeu parcialmente a um regato de água, enquanto o Prédio Coutinho, segundo os seus residentes, nunca teve problemas estruturais desde a sua construção, em 1973.

O homem que fez o 25 de Abril em Viana do Castelo foi um dos cidadãos que recebeu a solidariedade da Associação Nacional de Proprietários, tendo o seu presidente, António Frias Marques, «lamentado chegar-se ao extremo de impedir a livre circulação e acesso aos bens que se encontram dentro dos apartamentos e bloquear os legítimos proprietários dentro das suas próprias casas de morada de família, em que residem pessoas idosas, algumas com 90 anos de idade, através da mudança dos canhões das fechaduras».

‘Poluição visual’

Um mês depois das últimas Eleições Europeias, a ordem de despejo foi aprazada para esta segunda-feira, com a presença massiva da PSP de Viana do Castelo. Perante a legalidade invocada pela sociedade VianaPolis e pela Câmara Municipal de Viana do Castelo, um pequeno grupo de moradores, que já foram cerca de três centenas, não se conforma com a investida do Estado de Direito, invocando «valores mais altos». Os moradores baseiam-se no facto de terem «comprado as casas» e de o edifício «não oferecer qualquer tipo de risco». No entanto, o edifício foi considerado «poluição visual» logo aquando do consulado de José Sócrates como ministro do Ambiente, assim como em relação às Torres de Ofir, em Esposende, que continuam por demolir, apesar da progressão do mar.

Os moradores que resistem nunca levantaram o dinheiro depositado pela VianaPolis, pois preferem continuar a viver naquele prédio. A este propósito, a empresa de capitais exclusivamente públicos – criação de José Sócrates – fez saber esta quinta-feira que a demolição do prédio poderá começar a qualquer momento, apesar de ainda haver mais de uma dezena de residentes no imóvel. Sobre este assunto, a VianaPolis e a Câmara Municipal de Viana do Castelo não responderam aos pedidos de comentários enviados pelo SOL. 

O presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo, José Maria Costa, apelou publicamente esta quinta-feira «ao bom senso» dos últimos moradores do prédio Coutinho, alertando para o facto de estarem a «incorrer no crime de usurpação de bem imóvel», confirmando que tem mantido «ao longo dos dois últimos dias contactos telefónicos com esses moradores, apelando ao seu bom senso e alertando para o facto de estarem a incorrer no crime de usurpação de bem imóvel».

O autarca do Partido Socialista acrescentou ainda que tem reunido desde segunda-feira e «telefonado ao advogado dos moradores, no sentido de criar todas as condições para a saída, concedendo tempo e um espaço onde eles possam guardar todos os seus haveres». Salientou ainda que «os valores da indemnização a que têm direito está disponível nas suas contas bancárias».

Autarca socialistaprocessa advogado

José Maria Costa anunciou que a sociedade VianaPolis vai participar à Ordem dos Advogados, devido ao alegado «incumprimento da conduta profissional e deontológica dos mandatários dos moradores» do Prédio Coutinho, justificando que «o advogado está obrigado a pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas e é também dever do advogado não advogar contra o Direito, não usar meios ou expedientes ilegais nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correta aplicação da lei».

O autarca socialista afirmou que a sociedade VianaPolis tem observado «na conduta dos mandatários dos ocupantes do Edifício Jardim [Prédio Coutinho] claro incumprimento do código de deontologia dos advogados europeus», acrescentando que «esta postura dos mandatários [advogados] poderá colocar em risco a saúde e as condições de integridade dos ocupantes e não a da VianaPolis, pelo que caso se venha a verificar alguma situação referida, a sociedade ver-se-á obrigada a responsabilizar criminalmente os mandatários».

Se for ao hospital é despejado

Mas há dramas humanos muito mais profundos, como o da Família Correia, em que o pai, Agostinho Correia, de 88 anos, não consegue sair de casa, pois as ordens da VianaPolis são muito claras, transmitidas pelos diversos seguranças da empresa Zafezone: «quem sair do prédio, não entra mais», isto é, fica fora de casa, enquanto as chaves foram mudadas à medida que os apartamentos ficaram vagos.

Agostinho tem a mulher, de 87 anos, a lutar entre a vida e a morte, a poucas centenas de metros, no Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo, mas deixou de visitar a esposa desde esta segunda-feira ao ter sido avisado que se colocasse um pé fora do edifício, logo seria despejado. A mulher pode falecer a qualquer momento sem ter uma última visita sua, segundo revelou ao SOL um dos seus filhos, Raimundo Correia, que tem ficado na rua a enviar a comida ao almoço e ao jantar, por uma corda que o pai lhe lança do quinto andar, já que não tem água nem gás, cortados esta semana a mando da VianaPolis, que invoca ser legítima proprietária de todos os apartamentos.

A Viana Polis fez saber que vai avançar com queixas crime por alegadas «desobediências a ordem legítima confirmada judicialmente» contra aqueles últimos moradores do Prédio Coutinho, salientando a empresa de capitais públicos «não abdicar de dar continuidade ao procedimento de desocupação do Edifício Jardim» [Prédio Coutinho].

«Um problema de saúde pública»

Maria José Ponte, de nacionalidade espanhola, sofre de problemas asmáticos e debate-se também com apneia do sono, pelo que o receio de toda a vizinhança é que, se cortarem a eletricidade, no seu caso, não pode usar a máquina que lhe alivia, diariamente, a falta de ar, aparelho que só trabalha a energia elétrica. Foi o que afirmou, aliás, o médico Costa e Silva, depois de já esta quarta-feira ter visitado os moradores, tendo o perito médico-legal afirmado «haver um problema de saúde pública» no Prédio Coutinho, onde desde segunda-feira as pessoas não têm água, nem para despejar pelas sanitas os dejetos das suas necessidades fisiológicas, enquanto a zona passou a ser um local de observação para os mirones.

«O estado geral dos moradores é de ansiedade, de incerteza e medo do futuro, há também razões de fundo para se sentirem desconfortáveis, há um problema de saúde pública, que é o facto de cortarem a água», afirmou o médico Costa e Silva, notando «a dificuldade que é as pessoas não poderem cozinhar ou até fazerem a sua higiene» – destacando o caso de Maria José Ponte.

Na quinta-feira, depois do corte de eletricidade que a impede de continuar a utilizar a sua máquina de respiração, Maria José Ponte desmaiou, no momento em que já se preparava para entregar o cão a uma outra mulher, a fim de esta passear o animal pelo jardim, tendo batido com a cabeça no chão e sofrido ferimentos cranianos, mas recusou ir ao Hospital de Viana do Castelo, porque se saisse do Prédio Coutinho já não a deixariam voltar a entrar. Foi assistida dentro do prédio pelos Bombeiros Voluntários de Viana do Castelo, que têm prestado socorro a todas as situações desde  segunda-feira, o dia desde o qual se tenta a todo o custo fazer o despejo dos últimos moradores, com base numa sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.

Críticas a José Sócrates 

Já José Luís Manso Preto, o herdeiro de um apartamento no Prédio Coutinho, onde viveu na infância e juventude, critica «a ausência da Segurança Social» ao longo do processo de despejo dos residentes, parte dos quais com mais de 80 anos de idade.

O homem, de 62 anos, lamentou ao SOL que «tal como a Segurança Social, nenhuma outra das instituições de solidariedade, nem a própria Igreja Católica, tomaram qualquer posição». Numa alusão a José Sócrates, que, enquanto ministro do Ambiente, começou o processo de demolição, Manso Preto notou que «estas casas foram compradas com dinheiro honrado, não à custa de amigos especiais, foram adquiridas com dinheiro ganho honradamente».

A Câmara de Viana do Castelo afirmou a propósito desta situação, através do seu presidente, José Maria Costa, que «as pessoas, neste momento, estão a desobedecer a uma decisão do Tribunal». A Câmara, disse, está «a tomar posse efetiva das frações, uma vez que a ocupação por parte das pessoas, neste momento, configura uma ocupação ilegal», aludindo ao projeto, ainda não aprovado, de um novo mercado municipal no local do Prédio Coutinho, que, curiosamente, já tinha sido construído no espaço do velho mercado.

Ministro quebra silêncio

O ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, quebrou ontem o silêncio sobre a polémica, tendo afirmado que os habitantes que permanecem no prédio «correm o risco de estarem a cometer um crime». 

Para a tutela, «aqui os abusados somos mesmo nós, os poderes públicos», embora as pessoas saibam há 19 anos «que têm de sair de lá e intentaram, num estado de direito, como é normal, um conjunto de ações em tribunal e perderam todas», afirmou Matos Fernandes.