A corrupção à portuguesa

Em 2013 a CML licenciava por ano 100 milhões de euros de obras; em 2018 foram mais de mil milhões

Na semana em que ficámos a saber que Portugal faz má figura internacional na prevenção da corrupção, sendo o país com maior percentagem de medidas ainda por implementar no Grupo de Estados contra a Corrupção do Conselho da Europa;

Na semana em que ouvimos o general Ramalho Eanes, antigo Presidente da República, fazer alertas contra a corrupção, devido à atuação de partidos que «funcionam como corporações de interesses»;

Na semana em que o chefe do Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, teve de ouvir de uma deputada espanhola que Portugal era um país que não combatia a corrupção e vivia afogado no nepotismo das famílias do Governo;

Numa semana assim, temos mesmo de falar de corrupção.

Falemos então da corrupção que ocorre com agentes públicos (embora ela também ocorra entre privados).

Tomemos exemplos corriqueiros de todos os dias.

Quando os serviços públicos funcionam mal, abrem-se as portas à corrupção. Se um cartão do cidadão ou um passaporte é difícil e moroso de obter, torna-se um bem precioso. Um bem pelo qual um cidadão desesperado é capaz de querer pagar mais do que o devido.

Se uma licença para fazer obras em casa é difícil de obter, o proprietário aflito fica disposto a pagar para a ter.

E se, nestes casos, encontra do outro lado um funcionário público que possa ser corrompido, então junta-se a fome com a vontade de comer.

Imagine-se ainda uma cidade com crónicos problemas de licenciamento urbanístico. Se os grandes promotores quiserem o licenciamento dos seus projetos, quanto não estarão dispostos a pagar para terem a sua licença e avançarem com as obras? E se, do outro lado, encontrarem vereadores, diretores e funcionários corruptos, que sucederá? Naturalmente, juntam-se e dançam o tango.

Vejamos o caso prático da Câmara de Lisboa: esta tem, neste mês de junho de 2019, quase 4.000 processos urbanísticos pendentes, número que se tem mantido estável ao longo dos anos.

De facto, em 31 de dezembro 2017 havia 4.056 processos pendentes. E um ano depois, de acordo com o relatório anual de licenciamento urbanístico, eram 3.979.

Manuel Salgado, o vereador do urbanismo desde 2007, dizia em abril que entravam na Câmara à volta de 2.500 processos por ano, e reconheceu que os serviços não lhes davam vazão. Por essa altura, o presidente da CML, Fernando Medina, anunciou a criação de «uma equipa de grandes dimensões» para «regularizar o passivo».

Percebe-se o problema do presidente: a Câmara vive da receita do imobiliário. Só no primeiro trimestre de 2019 arrecadou diretamente cerca de 10,8 milhões de euros em compensações urbanísticas e 6,5 milhões na cobrança da Taxa pela Realização, Manutenção e Reforço de Infra-Estruturas Urbanísticas.

Isto sem falar no IMT (o imposto cobrado de cada vez que se vende um imóvel em Lisboa), que rendeu à Câmara, em 2017, 245,5 milhões de euros. Ou seja, o IMT vale um quinto do orçamento da Câmara.

É Fernando Medina quem o diz: em 2013, quando tomou posse, a autarquia licenciava por ano 100 milhões de euros de obras, e acabou 2018 com «mais de mil milhões num só ano».

Agora, caros amigos, imaginem só o que fazem milhares de processos empilhados à espera de licenças. Até aposto que há quem olhe para eles e não veja papel — veja antes a galinha dos ovos de ouro…

sofiarocha@sol.pt