‘Leonardo da Vinci ensina-nos a alegria de nos interessarmos por tudo’

Depois das biografias de Benjamin Franklin, Albert Einstein e Steve Jobs, Walter Isaacson lança a de Leonardo da Vinci, que vai ser transformada num filme com Leonardo DiCaprio no papel principal. Ao SOL, o autor fala sobre ‘o prazer absoluto de visualizar’ a mente do artista e filósofo ‘a dançar à volta das diferentes áreas’.

Leonardo da Vinci é talvez a figura mais misteriosa, reverenciada e fascinante dos últimos mil anos. Sobre ele debruçaram-se algumas das maiores mentes – de Vasari a Sigmund Freud, de Paul Valéry a Ernest Gombrich e Kenneth Clark – mas também foram ditos os maiores disparates e criadas as teorias mais mirabolantes.

Exatamente quinhentos anos depois da sua morte em França (1519), Walter Isaacson (n. Nova Orleães, 1952) dissecou a vida do lendário artista, analisando ponto por ponto o seu percurso, a sua arte e o seu legado, escrutinando os temas mais controversos.

Sem negligenciar a sua aura mítica, Leonardo da Vinci (ed. Porto Editora) apresenta-nos um homem de carne e osso, um filho ilegítimo de um notário, canhoto e homossexual, que desde cedo demonstrou uma sensibilidade e um talento excecionais. Ao longo destas páginas, vemo-lo a trabalhar no ateliê do seu mestre Verrocchio, acompanhamos as suas aventuras sexuais e arrufos com namorados, assistimos à criação de obras-primas e testemunhamos o funcionamento da sua inteligência quase sobrenatural. O retrato é tão vivo e detalhado que vai ser transformado em filme pela Paramount Pictures, provavelmente com DiCaprio a vestir a pele de Da Vinci.

A biografia de Leonardo é a quinta que Walter Isaacson assina, depois de ter dedicado livros a Henry Kissinger, Benjamin Franklin, Albert Einstein e Steve Jobs – um conjunto que é habitualmente designado como ‘the genius biographies’. A última desta sucessão foi feita em colaboração com o fundador da Apple e baseou-se em mais de quarenta entrevistas que o autor fez a Jobs, além de conversas com os seus amigos, familiares e até antagonistas.

Isaacson, de resto, também não é propriamente um desconhecido nos Estados Unidos – bem pelo contrário. Licenciado em História e Literatura, começou como jornalista do The Sunday Times, em Londres. Em 1978 entrou na revista Time, de que se tornaria editor em 1996. Mas ainda não tinha chegado ao topo: em 2001 tornou-se CEO da CNN, cargo que abandonou ao fim de apenas dois anos.

Paralelamente à escrita e à carreira em órgãos de comunicação, Isaacson foi nomeado por Bush, Hillary Clinton e Barack Obama para diferentes funções políticas. Em 2012 a Time considerou-o uma das cem pessoas mais influentes do mundo e em 2014 o National Endowment for the Humanities escolheu-o para proferir a Palestra Jefferson, aquela que é considerada a maior distinção na área das humanidades concedida pelo Governo americano.

Walter Isaacson respondeu às perguntas do SOL por email.

É bem sabido que, além de um artista consumado, Leonardo foi engenheiro, músico, cientista, inventor e, segundo o Rei de França Francisco I, até filósofo. Esse facto obrigou-o a estudar todos estes domínios do conhecimento?

Leonardo da Vinci ensina-nos a alegria de nos interessarmos por tudo – por todas as áreas do conhecimento. Por isso foi um prazer absoluto poder visualizar a sua mente a dançar à volta dessas diferentes áreas e tentar aprender tudo o que ele fez e estudou.

Refere no seu livro que Leonardo «foi o primeiro grande pensador a atingir um profundo conhecimento da ciência sem ter educação formal em grego ou latim». Vê essa falta como uma desvantagem ou, pelo contrário, como uma vantagem?

Penso que foi uma vantagem ele não ter a cabeça atafulhada por uma quantidade de sabedoria herdada e por crenças medievais poeirentas. Ele tornou-se aquilo a que chamava ‘um discípulo da experiência’ e tentava aprender tudo em primeira mão.

Sabemos quais eram os artistas do seu tempo que Leonardo admirava e quais aqueles de quem não gostava?

Leonardo era um grande admirador de [Filippo] Brunelleschi por este ser ao mesmo tempo artista e engenheiro. Em relação aos de que não gostava, tinha uma rivalidade problemática com Miguel Ângelo, à qual dediquei um capítulo do meu livro.

Uma das questões importantes do Renascimento diz respeito ao estatuto do artista. Leonardo foi sempre valorizado como artista e recompensado em conformidade? O seu estatuto mudou ou ascendeu ao longo da sua vida?

Leonardo queria ser reconhecido como artista e engenheiro. Sentia que isso lhe dava mais estatuto. Os artistas ainda não eram considerados verdadeiras estrelas até Leonardo e Miguel Ângelo ajudarem a mudar isso.

Como podemos explicar a incapacidade de Leonardo para acabar as suas obras? Acha que isso se deve ao seu excesso de perfeccionismo ou a dedicar-se a demasiadas coisas ao mesmo tempo?

Penso que ele gostava mais da parte da conceção do que da execução. E se alguma coisa não estava perfeita, ele punha o trabalho de lado.

Às vezes esquecemo-nos de que até as grandes mentes têm de lidar com a vida quotidiana e as suas trivialidades. Estas preocupações mais terra-a-terra emergem muitas vezes nas notas de Leonardo?

O que eu adoro nos seus cadernos são as listas de compras e listas de coisas para fazer. Também gosto das vezes em que escrevinha apontamentos furiosos sobre alguma patifaria do seu companheiro Salai.

Num dos seus escritos, Leonardo refere a superioridade do pintor sobre o escultor dizendo que o pintor pode trabalhar vestido com as suas melhores roupas. E também deixou uma folha com instruções para alourar o cabelo. Podemos concluir, a partir destas referências, que ele se preocupava com a sua aparência e pode até ter sido um pouco vaidoso?

Leonardo preocupava-se sem dúvida com a sua aparência. Era um homem muito atlético e tinha o cabelo longo e encaracolado.

Qual é, na sua opinião, a obra de arte, texto ou desenho que revela melhor a sua personalidade e as suas obsessões?

O Homem Vitruviano, porque é uma grande obra de arte mas também de anatomia e espiritualidade. Penso que se trata de um auto-retrato. É Leonardo de pé, nu perante o mundo e o universo a dizer: ‘Onde é que eu me encaixo?’.