«Um acto de simpatia da parte de um sem-abrigo…»

Esta longa afirmação, perto da Av. do Brasil, em Lisboa (entretanto já tapada com tinta branca), diz: «Um acto de simpatia da parte de um sem-abrigo perante nós é encarado com desconfiança. O mesmo gesto da parte de um burlão mascarado de fato e gravata é sinónimo de amabilidade e gentileza!» Trata-se de mais uma…

E esta constatação é bem verdade. Muitas vezes julgamos as pessoas pelo seu aspeto e desconfiamos de quem tem um ar menos cuidado. Quando alguém com pior ar se aproxima de nós, desviamo-nos, não queremos ouvir o que nos diz, e se tem algum gesto de delicadeza, pensamos que quer algo em troca. Mas se a pessoa que se aproxima está bem vestida, a nossa reação é diferente, damos-lhe atenção e ouvimos o que quer dizer. No fundo, como diz Fernando Pessoa: «Pensar faz mal às emoções».

É óbvio que esta declaração pretende criticar situações de putativa burla por parte de pessoas «mascaradas de fato e gravata» e de quem, à partida, não desconfiaríamos. A sua «amabilidade e gentileza» seria, em abstrato, um dado adquirido para nós. Nunca pensaríamos haver tantos burlões mascarados.

Mas, se pensarmos bem, é de quem não esperamos que, muitas vezes, nos chegam as maiores surpresas. Mesmo na vida quotidiana, na vida pessoal, acabamos por ser «traídos» por quem nunca pensámos que poderia ter um comportamento de que não gostamos.

Temos tendência para julgar os outros a partir dos nossos valores e para pensar que fariam o mesmo que fazemos, ou a considerar que atuariam do mesmo modo que nós. É por este motivo que somos surpreendidos quando a sua atuação difere da nossa.

Do mesmo modo, os nossos preconceitos levam-nos a julgar os outros pelo seu aspeto exterior, pela forma como vestem, pelo modo como se movem, pelo estilo que adotam. Somos cruéis com os outros porque, como diz Cristina Norton, em A Vida É Um Tango, as pessoas «acreditam que rindo dos outros ninguém irá notar os seus defeitos». E também porque temos alguma dificuldade em aceitar a diferença. Desconfiamos, naturalmente, do desconhecido. E essa desconfiança tem raiz no medo que experimentamos perante aquilo com que não nos sentimos à vontade. Como diz Ary dos Santos: «a reação não passará diante / do teu punho fechado contra o medo». É esse medo que faz com que estejamos, normalmente, reticentes perante aqueles que pensamos que poderão representar alguma ameaça para nós, para o nosso trabalho, para a nossa família. É esse medo do desconhecido que está na causa de muitas pessoas verem com desconfiança a chegada de migrantes, de estrangeiros, de pessoas com outras culturas, outras religiões, outros hábitos.

Pena é que assim seja, porque é da diferença que nascem ideias novas, é no contraste que se gera a luz, é a partir do desconhecido que podem surgir novas oportunidades, é do conhecimento do outro que podemos aprender novas realidades e, a partir delas, desenvolver novas perspetivas, que são sempre enriquecedoras. Porque, no fundo, somos todos estrangeiros.

 

Maria Eugénia Leitão