As previsões do senhor da livraria

Jeff Bezos também falhou e desvalorizou um fator importante: os dados pessoais

Fazer previsões é sempre um exercício arriscado. Quanto maior a distância temporal, maior o risco e mesmo quando as previsões se verificam é raro o reconhecimento de algum tipo de mérito. A exceção dá-se quando há uma evidência que faça a correspondência entre previsão e obra feita. E se o mérito de afirmar que daqui a dez anos todos vamos querer comer aquilo ou usar aqueloutro é pouco ou nenhum, mostrar obra feita com base nessa mesma crença é um sinal de coragem, merecedor de respeito e admiração. Distinguem-se assim videntes de visionários.

No universo dos videntes, há várias fórmulas que parecem funcionar. Desde a escolha segura, como prever a vitória do FC Porto num campeonato nacional da década 90, à técnica da quantidade, fazer muitas previsões aumenta a probabilidade de alguma se verificar, ou a condicional, tal fenómeno acontece desde que aconteçam uma série de outros. Nada contra, observo e respeito o conforto e motivação que as previsões, opiniões, de outras pessoas nos podem dar. Mas mantenho muitas reservas relativamente a este tipo de opiniões, sobretudo quando delas se fazem depender decisões importantes.

Jeff Bezos, pai da Amazon é um dos mais destacados empreendedores no contexto da economia digital e desmaterializada. Bezos terá começado por ser um vidente, alguém que construiu uma visão muito própria sobre o futuro do retalho e que foi atrás dela, que trabalhou para a concretizar. Contrariamente ao Zandinga, nas suas palavras capaz de alinhar e desalinhar os astros para prever e condicionar o futuro, mas não há registo que tenha sido dono de um fabuloso pé esquerdo ou a de uma capacidade extraordinária para voar sobre os centrais, Bezos acreditou, concretizou, insistiu, insistiu, insistiu e, ao dia de hoje, triunfou. Hoje são poucos os que não acreditam e confiam na marca Amazon, na ascensão do comércio eletrónico enquanto principal meio para vender de produtos e serviços. Hoje não acredito que ainda haja quem considere Bezos um vidente.

Esta semana encontrei um artigo do Business Insider que recupera algumas das previsões e ambições do fundador da Amazon em 1999. 20 anos volvidos, Bezos é o homem mais rico do planeta – ou um dos, depende do ranking – e a sua Amazon é maior loja online do mundo.

Há 20 anos o fundador da Amazon afirmava que o seu objetivo era tentar construir uma plataforma onde as pessoas pudessem pesquisar e descobrir tudo que quisessem comprar online. O artigo faz referência a um estudo que coloca a Amazon como a primeira página para os online shoppers, à frente do Google. Nos últimos 20 anos o comércio eletrónico cresceu, talvez queiramos comprar tudo online e não só apenas algumas categorias. Se hoje compramos frescos, roupa para bebé e medicamentos online, confiamos nas marcas e nas suas plataformas eletrónicas a este ponto, em parte devemos ao esforço de Bezos.

Outra das afirmações atribuídas ao pai da Amazon diz respeito ao futuro do retalho físico. Em 1999, Bezos disse que a sobrevivência do formato iria depender da capacidade das marcas entregarem entretenimento e conveniência. Mais do que nunca, as marcas apostam na experiência de loja como um dos grandes fatores de diferenciação: lançamentos, concertos, sessões de debate e festas são alguns dos exemplos de atividades que as marcas desenvolvem para atrair potenciais clientes.

A publicidade também foi outro dos temas que Bezos abordou, valorizando a importância desta fonte de receitas e destacando as vantagens do meio digital, nomeadamente a maior capacidade de personalização face aos meios tradicionais. Hoje encontramos na comunicação comercial nos meios digitais uma maior correspondência entre o perfil de cada um e a mensagem que lhe é apresentada, e diferenças muito significativas entre a mensagem da marca para uma pessoa e outra.

Mas Bezos também falhou, pelo menos desvalorizou, um fator importante: os dados. Em 1999 não acreditava que as pessoas se preocupassem com os seus dados pessoais, que isso não seria um problema caso entendesse vender a informação que a Amazon possui sobre os seus clientes a terceiros. Por imposição legal e despertar de muitas consciências, começa a existir um maior conhecimento do valor dos dados pessoais e cuidado com a informação que partilhamos, quer do ponto de vista comercial quer da potencial ameaça inerente à exposição pública da vida privada.

Um vidente e um visionário partilham algumas características, destacando-se o segundo pela capacidade de implementar e sucesso que alcança. É um empreendedor. Esta noção é fundamental para garantir a renovação e inovação nos negócios, sem assumir riscos e concretizar obra a maior parte das previsões perdem o seu valor. Não somos, nem podemos todos ser como Jeff Bezos e antecipar tantas condições de mercado 20 anos antes. É mais fácil fazer como o Zandinga e dizer que ganha o Porto. Mas custa-me acreditar que, se em vez de vidente o Zandinga tivesse optado por montar uma livraria, esta algum dia teria sido mais do que um espaço para comprar livros.