Quem viveu a revolução de Abril recorda que um dos eixos da mudança estava em extirpar as ‘sociedades de favorecimento mútuo’, que tinham prosperado num país de feudos e castas. Eram boas as intenções.
Quarenta anos passados, o país dá-se conta de que o comércio dos privilégios volta a ser moeda corrente. Grita-se contra o nepotismo, como se fosse um pecado do século XXI. Aos escandalizados, talvez valha a pena mostrar as ‘Resoluções dos Conselhos de Ministros de Vasco Gonçalves’, com nomeações de primos e sobrinhos às carradas.
Homem sábio, o professor José Hermano Saraiva explicou-me um dia o funcionamento do regime sucessório, que, em sua tese, herdámos das lutas liberais.
Perante a alternância de quem reinava, as famílias possidentes cuidavam de plantar os seus rebentos na ‘situação’ e na ‘oposição’, de tal sorte que, mudando o regime, os apelidos se mantinham colados ao poder, muitas vezes saindo o pai para entrar um filho.
Passaram duzentos anos e… mais do mesmo. Os nepotes terão mais mérito? Não têm! Sabem é usar nomes e influências, e são lestos a movimentar-se.
Abusos do passado não desculpam os do presente – e só são aqui chamados para informar quem não viveu esses tempos, e moderar as comoções desatadas a cada novo escândalo.
Falando em corrupção. Anda o país exaltado com a notícia de que estamos na cauda da Europa na aplicação das recomendações do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção), trazendo à evidência que em Portugal nada se faz para a combater.
Não tenho forma de apontar os anos em que a corrupção foi maior, mas não estranharei se me disserem que o boom esteve nos governos de Cavaco, Guterres e Barroso, em que a impunidade assentou arraiais.
Andavam, então, os maiorais do Ministério Público ocupados com a promoção pessoal que os tornaria importantes, a ponto de aparecerem lado a lado com os notáveis do reino nas revistas cor-de-rosa. Tão distraídos, que se esqueceram do dever de investigar, deixando passar incólumes casos de enriquecimento súbito… porque aos amigos não se pergunta a origem do dinheiro.
O que saía nos jornais era expeditamente varrido para debaixo do tapete: venda de lotes para construção na encosta do Restelo, a vereadores, familiares e amigos; batota na atribuição de apartamentos recuperados pela CML na zona do Camões; deslocamento para o interior da mancha de proteção da Serra de Sintra, de forma a libertar lotes sobre a praia, adquiridos por correligionários da senhora que mandava na Câmara. De tudo se viu, naqueles anos do mais descarado fartar vilanagem.
No futebol, quem falha é despedido; no MP, o arbítrio enquista-se e o comércio das fugas de informação prospera.
Se no horizonte surge a mais ténue ameaça à corporação, cerram-se fileiras e arma-se um rebuliço nacional em defesa da celebrada autonomia do MP – o nome de código que perpetua a ausência de escrutínio.