DgArtes. Quando a rapidez destrona o mérito

A terceira fase do Procedimento Simplificado do Programa de Apoio a Projetos da DGArtes abriu na passada segunda-feira e fechou minutos depois. Candidatos dizem que este é um ‘sistema de rifas’ e que, mais do que a validade do projeto, conta a velocidade da internet.

Menos de cinco minutos. Foi esse o tempo que demoraram a esgotar as verbas da terceira fase do Procedimento Simplificado do Programa de Apoio a Projetos da DGArtes, aberto na passada segunda-feira, dia 1 de julho, às 10h00. E se houve candidatos que ainda conseguiram tentar submeter, muitos sem sucesso, a candidatura, outros, mesmo estando em frente ao computador à hora marcada e com os formulários preenchidos, nem sequer conseguiram enviar as suas propostas, tal foi o volume da procura. Os candidatos contestam que a rapidez, ao invés do mérito, se tenha tornado no principal critério de seleção, uma vez que as candidaturas fecham mal seja atingido o montante disponível. Desta vez, segundo disse ao SOL a DGArtes, a verba que podia ser requerida fixou-se nos 119.070,12 euros. 

Por partes: o Procedimento Simplificado Programa de Apoio a Projetos da DGArtes nasceu em 2017 e serve para apoiar projetos de menor dimensão – no sentido em que requerem valores mais baixos – foi este ano revisto, sendo as novas regras o resultado «do trabalho de um grupo de representantes do setor», precisou a entidade. Podem candidatar-se todos os projetos inscritos nas artes performativas (circo contemporâneo e artes de rua, dança, música e teatro); artes visuais (arquitetura, artes plásticas, design, fotografia e novos media) e cruzamento disciplinar. Cada projeto pode pedir um mínimo de 500 e um máximo de cinco mil euros. Em 2019, o procedimento abriu em três fases: a primeira entre março e abril, a segunda entre maio e julho e esta última, agora aberta na segunda-feira, que tem uma janela temporal entre julho e setembro – mas que fechou escassos minutos após a sua abertura. Segundo o regulamento, a DGArtes tinha disponíveis 65 mil euros para cada uma das fases, sendo que o dinheiro que não for entregue transita para a seguinte – o que justificará o montante mais elevado desta última fase.

Para se poderem candidatar, os concorrentes têm que preencher os formulários onde apresentam os seus projetos, e são esses os documentos que depois têm que submeter online quando abre o concurso. Assim que a página fica disponível, os candidatos deverão ver um botão verde onde devem clicar para depois enviar os documentos necessários. 

Apesar da simplicidade da candidatura que tem o objetivo de, passemos a redundância, simplificar a vida a quem pede apoios, montar um projeto requer bastante tempo, explicaram ao SOL vários candidatos. Os projetos demoram a pôr de pé, envolvem, entre outros passos, uma série de pedidos de cedências – o que aumentou o nível de frustração dos… candidatos a candidatos. «O problema é que isto já causa dolo a muita gente», explica Gonçalo Gato, que tentou entregar um projeto na área da música. «Estava há dois meses a chatear as pessoas a pedir cartas, a tratar de cedências de auditórios, para depois nem conseguir concorrer. É extremamente ingrato e frustrante».

O botão que nem ficou verde 

Gonçalo Gato, compositor, foi o único candidato ouvido pelo SOL que conseguiu ver o tal botão verde. «Sou apenas uma entre as muitas pessoas que tentaram concorrer», começa por contar, explicando que antes das dez de segunda-feira já «tinha encontro marcado com o computador» e estava sentado em frente ao ecrã com tudo pronto. Já tinha tentado candidatar-se na segunda fase, mas não chegou a fazê-lo porque ainda estava a preencher os formulários quando um amigo lhe ligou a dizer que o ‘plafond’ já se tinha esgotado. Desta vez, percebeu que podia ter os documentos preenchidos de antemão e já estava prevenido. «Às 10h02 o botão ficou bloqueado e às 10h08 percebi que a candidatura não tinha sido submetida, por isso tirei uma fotografia ao ecrã», conta o músico que, no ano passado, foi o compositor português em residência na Casa da Música, no Porto.

Uma manhã frustrante

Se Gonçalo Gato ainda conseguiu ver o tal botão verde, Vânia Rodrigues, produtora cultural independente que esteve ligada à companhia teatral Mala Voadora; e Paulo Jorge Ferreira, acordeonista, compositor e professor no Conservatório Nacional e na Escola Superior de Artes Aplicadas, não tiveram a mesma ‘sorte’. Vânia também tinha a sua candidatura na área do teatro pronta, tentou submetê-la às 10h01 e, perante a não resposta do sistema, ainda pensou que o problema fosse do seu computador, pelo que copiou e colou as respostas do formulário previamente preenchido para um novo, situação que aconteceu a outras pessoas com quem falou. «Às 10h24 ou 10h26 percebi que não dava mesmo», diz. «Já fiz muitas candidaturas e esta é realmente simples, até pelos montantes baixos, mas este episódio revela bem a assimetria da relação entre o Estado e os cidadãos, é um desrespeito absoluto», aponta. Até porque, lembra a produtora, são muitas vezes estes projetos mais pequenos e sem impacto de maior no tecido orçamental que conseguem levar a cultura fora dos grandes polos e aproximar os cidadãos da criação artística.

Paulo Jorge Ferreira, acordeonista profissional há mais de 30 anos, tentou pela primeira vez concorrer a estes apoios na segunda-feira. «Estive 12 dias a preparar a candidatura e isto depois é uma chatice grande porque pedi declarações a algumas entidades, como a Antena 2 ou o Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP), e depois nem tive hipótese de concorrer. No meu caso, o botão nem chegou a ficar verde, por volta das 10h05 já aparecia uma notificação que dizia que o montante já tinha sido todo atribuído», declara. «Meia hora depois mandei um PDF para a DGArtes com o comprovativo a mostrar que tinha tudo o que era solicitado». Para o músico, o mais desanimador é não ter chegado sequer a poder concorrer. «Sabemos que é muito difícil sermos selecionados. Eu, como penso que a maioria das pessoas, tentam reunir argumentos válidos para mostrar a pertinência do seu projeto, e depois não ser sequer considerado é muito frustrante».

Hugo Vasco Reis, também compositor e guitarrista – que passou pela Porto Jazz School, pelo Conservatório de Música do Porto e pela Escola Superior de Música de Lisboa e que acaba de editar o CD Chamber Music I  – tinha conseguido, em 2017, o apoio deste programa. «Quando fui apoiado demorei quase um mês, só depois submeti a candidatura. Nunca pensei que, passado pouco mais de um ano, as coisas tivessem chegado a este ponto», comenta. Este ano, voltou a tentar na segunda fase, aberta no primeiro dia de maio. «Estive praticamente todo o mês de abril a escrever o projeto», explica. Também nessa fase, dada a velocidade com que se esgotou o montante disponível, não o conseguiu enviar. «Para esta fase já nem preparei projeto, mas fazia parte de outras quatro candidaturas encabeçadas por outras pessoas». Foi Hugo quem, por ter mais experiência, ajudou os colegas a desenhar as candidaturas e, como tal, às 8h30 desta segunda-feira já estava em frente ao computador. O músico relata uma situação semelhante às acima citadas. «Direta ou indiretamente, eu estava em quatro candidaturas como produtor musical – uma delas era a do Paulo Jorge Ferreira – e nenhum dos quatro cabeças de projeto conseguiu submeter os formulários».

Um sistema de rifas

Em resposta ao SOL, a DGArtes disse que este procedimento «não pretende ser um concurso e assumiu, no presente ano, já uma nova forma de operacionalização, prevendo a abertura programada em três fases ao longo do ano de 2019, no qual foram submetidos 70 pedidos de apoio». E acrescentam: «Dada a crescente procura verificada no Procedimento Simplificado, a DGARTES está a avaliar outras formas para a sua operacionalização, que garantam a viabilização dos princípios que presidiram à criação deste modelo que se pretende menos burocrático e mais ágil para a obtenção de apoios até 5.000 ».

Para os candidatos a candidatos, este é um modelo que não funciona. «Já não é uma boa iniciativa porque agora entregar ou não uma candidatura até depende da velocidade dos motores de busca. Premeia-se o mais rápido, e o melhor não é o mais rápido», defende Hugo Vasco Reis. Entre outros critérios, lembra o músico, as propostas têm que ser avaliadas, no mínimo, com um 12. Ou seja, até podem existir uma série de projetos que valham um 19, mas se não forem os primeiros a entrar – o que, neste cenário, pode acontecer em segundos -, simplesmente não são contemplados.

Também Vânia Rodrigues critica o procedimento simplificado. «Não interessa qual é o melhor projeto, interessa a velocidade da internet. Parece um sistema de rifas», define. «Espanta-me que tenha sobrevivido até agora assim, porque mesmo que funcionasse é injusto. Uma coisa é cumprir prazos, outra é brincar ao quem é o mais rápido a carregar no botão do rato. Esta não é uma forma normal do Estado se relacionar com os agentes culturais, baseada na rapidez e não na qualidade das proposta».

Já Gonçalo Gato traça um retrato da manhã de segunda-feira: nele, vemos milho a ser lançado aos pombos – come o que chegar mais rápido. «É uma fotografia um bocado triste do modelo das artes».