Hóquei. Num tempo sem agá…

Hoje, em Barcelona, começa um novo Mundial. Primeira vitória portuguesa data de 1947. Tirámos o título à Inglaterra. No dia seguinte perdemos 0-10 em futebol.   

Fernando Assis Pacheco, amigo e mestre já desaparecido, tão cedo que o foi, galego de sangue profundo nas veias criativas (e carregadas de colesterol), costumava dizer que, no hóquei em patins, a rivalidade entre portugueses e espanhóis, está tão, tão entranhada na pele que, de cada vez que um português se isolasse frente à baliza de Espanha, deveria encher os pulmões, ir ao fundo da alma, e atirar um grito com tanta força como atirava a bola com a ponta do stick: «Que te mate, coño!». O Assis era um caso raro de facilidade de escrita. Escreveu tudo. Reportagens únicas, entrevistas de tal forma originais que deviam, ainda hoje, ser usadas nas sebentas das escolas de jornalismo, poemas soberbos e um romance absolutamente notável que se inicia com a mesma violência com que um português deveria atirar à baliza espanhola: «Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé. O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto».

O Fernando, que era, por vezes, de uma linguagem violentíssima, também escrevia sobre hóquei em patins e recordo algumas crónicas suas que me bailam na memória como a fúria dos elementos da natureza perante a realidade de um furacão. Ele escreveu num tempo em que Portugal ganhava e tornava a ganhar – entre 1956 e 1974 foi seis vezes campeão do mundo em dez possíveis. Agora perde: de 2003 até hoje, em sete provas, seis para a Espanha (cinco consecutivas) e uma para a Argentina. Deixámos de ser os campeões dos campeões: 15 títulos no total para 17 dos espanhóis. Até quando, perguntaria Cícero, continuarão eles a dar cabo da nossa paciência?

 

No ano de 1947

Claro que o hóquei em patins já não é vivido com a intensidade de outros tempos. Muito menos os Portugal-Espanha que já não merecem a violência verbal de um «que te mate coño!». Está cada vez mais reduzido a um desporto praticado num país (Portugal), numa região (Catalunha), uma cidade (Monza, em Itália, com Novara a 60 quilómetros), e a uma rua (em San Juan, na Argentina, onde se acumulam as sedes dos principais clubes). O falhanço como modalidade olímpica, que se juntou ao falhanço lusitano de não ter, sequer, conseguido uma medalha, diminuiu a sua importância a nível internacional. Serão oito as seleções que estarão em Barcelona, divididas em dois grupos iniciais. Um com Espanha, França, Angola e Itália; outro com Portugal, Argentina, Colômbia e Chile. Daí se passará aos quartos-de-final e por aí em diante.

Curiosamente, o primeiro Campeonato do Mundo de Hóquei em patins foi disputado em 1936, em Estugarda, na Alemanha então nazi. Os ingleses, inventores do jogo, ainda o dominavam e obtiveram cinco vitórias em seis jogos, conquistando o título, algo que repetiriam três anos mais tarde, em Montreux, dessa vez com o pleno de seis em seis. Portugal ficou em terceiro nos dois Mundiais e a Espanha, absorta na sua terrível Guerra Civil, não tinha tempo nem gente para preocupações tamanhas. Primou pela ausência, não fosse a Catalunha uma das zonas do país mais massacradas pelo conflito.

À Guerra de Espanha sucedeu-se a II Grande Guerra e só em 1947, na pacata Lisboa que ficara longe das bombas que arrasavam as cidades da Europa central, se disputou a terceira edição que teve a especificidade de, já que foi totalmente disputada por países europeus, acumular com o Campeonato da Europa. Campeonato esse que se iniciara em 1926 e, disputado anualmente até 1939, teve 12 vitórias consecutivas do ingleses. A forma como a imprensa portuguesa viu o acontecimento carregou consigo uma camada de patriotismo tão grossa que se transformaria numa espécie de segunda pele da seleção nacional para as décadas que se seguiram.

Sete equipas – Portugal, Bélgica, Espanha, Inglaterra, Itália, França e Suíça – jogavam no sistema de todos contra todos. Nesse tempo em que hóquei ainda não levava agá, precisamente no dia 22 de maio de 1947, as parangonas exultavam: «O Campeonato do Mundo deve de oquei ter sido ganho ontem pela equipa de Portugal!».

 Saudava-se o empate entre Bélgica e Inglaterra e a vitória portuguesa sobre a Itália: «O jogo mais espetaculoso de todos os do presente campeonato. Quando o árbitro deu o encontro por concluído, um frémito de entusiasmo, de loucura, fustigou o público e os próprios vencedores. Campeonato do Mundo à vista!».

 

Simpática Espanha!!!

Pois, todo o mundo é composto de mudança e como mudaram as coisas no hóquei que, entretanto, deixou de ser oquei. A Espanha, que dois anos mais tarde, tornar-se-ia no tal figadal inimigo de patins, era tratada displicentemente como «simpática equipa do país vizinho». Que venha daí o Cícero outra vez nas catilinárias: «O tempora o mores!».

Portugal bateu a Itália por 3-2; a Itália bateu a Inglaterra por 4-3 e, antes da última jornada, com um Portugal-Inglaterra na ementa, como «piéce de résistence», os portugueses já eram campeões do mundo e da Europa, tudo ao mesmo tempo. Ah! Abundância! «Verdadeiramente maravilhosa a última jornada! Embora a equipa de Portugal entrasse no rink do Palácio das Exposições com os dois grandes títulos nas mãos, nem por isso o Portugal-Inglaterra deixou de ser jogado de forma a impressionar fortemente o público». 3-0 para os portugueses. Cipriano, Álvaro Lopes, Sidónio Serpa, Correia dos Santos, Jesus Correia e Olivério Serpa entravam para sempre pelos portões dourados do desporto nacional. 

Os ingleses encolheram os ombros: no dia seguinte, no Estádio nacional, em futebol, ganharam a Portugal por 10-0. 

Foi o dez-a-fio!