Wimbledon. Campos de morangos para sempre

De 1 a 14 deste mês, há Wimbledon e a relva. Desde 1877, o torneio de ténis mais prestigioso da Terra, esse planeta onde existe a Inglaterra. Das jogadas plebeias de Jorge VI, derrotado, à jarreteira escandalosa de Gorgeous Gussie, a rapariga que fez correr saliva no Parlamento, aos inesquecíveis e consecutivos Borg-McEnroe que ficarão…

Bem sei, bem sei, Liverpool e a infância de John Lennon, e tal e tal, brincadeiras junto da sede do Exército de Salvação Nacional, o jardim que se chamava Strawberry Fields: «Let me take you down/‘Cause I’m going to Strawberry Fields/Nothing is real/And nothing to get hung about/Strawberry Fields forever». Foi só um desvio da memória errante, cigana de um pensar. Também não há Wimbledon sem relva nem morangos, a tradição ainda é o que era, a tradição ainda é o que era no sudoeste de Londres onde nova edição do torneio de ténis mais charmoso do mundo tem, agora, início, nunca houve uma explicação verdadeiramente científica para ela, enfim, é a época dos morangos e os morangos eram tidos como um fruto da classe alta na fase vitoriana, só mais tarde tiveram direito ao acompanhamento francês do chantilly, mas isso são outros quinhentos, como gosta de dizer o povoléu.

Desde 1877, vejam bem, que os The Championships se disputam, podem tratá-los só por Wimbledon, foi assim que ficaram para todo o sempre na vida do All England Lawn Tennis and Croquet Club, fins de junho, princípios de julho. A relva está acima dos morangos, é o único dos quatro torneio do Grand Slam que se disputa em relva, logo aí, respeitando a gloriosa tradição do jogo, nem terra batida nem pisos sintéticos, relva pura e simples por que foi para se jogar sobre a relva que o ténis foi inventado.

A verdade é que, nessa Inglaterra que, como todos sabemos, se afeiçoa aos velhos hábitos como uma velhinha de Sloan Square ou Beauchamp Place se afeiçoa aos seus fox terriers, o ténis demorou a impor-se à, para nós, incompreensível excitação britânica do críquete, e Wimbledon só começou a ganhar o brilho que merece e conserva a partir dos últimos anos do século XIX.

Em 1884, já havia competição de pares e convites para as mulheres saírem das suas saias estufadas, envergarem algo de mais leve, mas nunca escandaloso – Gussie Moran ainda hoje é falada por ter deixado uma liga à mostra num movimento mais brusco, «honny soit qui mal y pense» –, e experimentarem o exercício da raquete. Vendo bem, num tempo em que os seus masculinos companheiros ainda iam para o court de calças compridas e coletinho de lã por cima da camisa, algo de muito atrevido, mas Wimbledon também teve de suportar a má educação de Ilea Nastase e John McEnroe e isso só serviu para lhe dar o toque de rebeldia que o excesso de goma em algumas golas parecia proibir.

 

Uma questão de moda

Wimbledon esteve sempre ligado à moda. À moda das senhoras e dos cavalheiros que se deslocavam lentamente, envaidecidos, para os seus lugares marcados em redor dos retângulos relvados, à moda que o ténis trouxe não apenas para o desporto mas também para a forma desportiva de vestir. Olhem para René Lacoste. Nos anos 30 surgiu em Wimbledon com a sua marca registada: um crocodilo desenhado ou bordado no peito da camisola, um crocodilo que hoje se vê por toda a parte, seja ele de loja cara ou de simples contrafação, e que é tão imortal como as folhinhas de louro entrançadas que foram marca registada de outro grande tenista, três vezes consecutivas vencedor de Wimbledon, o inglesíssimo Fred Perry.

Chegámos a uma era de Wimbledon que não tem comparação com qualquer outra à exceção de um ou outro pormenor que passa quase despercebido. Vivemos a era da industrialização e sabemos que, mais uma vez, nesta 133.ª edição da competição, qualquer coisa como 28 mil quilos de morangos e 7000 litros de natas estarão à disposição dos espetadores, mas que o «dress white code» ainda vale e que será sob esse restrito código que se apresentarão os membros da família real, tal como o fazem desde sempre, no Royal Box do Centre Court, com a exceção de 1926, quando Jorge VI resolveu fazer um aparecimento um tudo nada plebeu no ringue para defrontar, juntamente com o comandante Louis Greig, a dupla de veteranos Arthur Gore e Ropert Barret, sujeitando-se a uma derrota total e muito pouco majestática.

Foi escandaloso, sim, mas não tanto como a tal jarreteira visível de miss Moran, em 1949, que levou a que os membros do Parlamento gastassem algumas horas de saliva tendo como matéria a possibilidade de o ténis se estar a transformar num desporto que albergava laivos de «vulgarity and sin», totalmente alheios ao espírito puritano herdado da rainha Victoria Augusta._Miss Moran esteve-se nas tintas, ganhou publicidade lá nos seus_Estados Unidos, e ficou conhecida como Gorgeous Gussie, o que era um bom elogio para um pecadora de tamanho calibre.

Em 1981, ali num café bem junto ao Botaréu, em Águeda, não perdi, durante horas, pela televisão, a final entre John McEnroe e Björn Borg. Ainda hoje, para mim, ténis resume-se a todo aquele ambiente de provocação criado pelo americano que desafiava a natureza pacata de Ice Borg, o sueco de gelo. O café estava vazio e eu de cotovelos atarrachados aos balcão, escorropichando volta e meia um fino para enganar o calor bruto que caíra sobre a tarde, amarrando o rio a uma corrente fraca e desoladora. McEnroe esbracejava e berrava para o árbitro:_«You can’t be serious!» E o árbitro, sério, fixando-o nos olhos, impassível.

Chamava-se Fred Hoyles, o árbitro, claro. No final do torneio, o americano acumulou mil e quinhentos dólares em multas. Desbocado, não resistiu a mandar Hoyles para o cu do mundo, palavras do próprio, bem audíveis por toda a gente. Björn, impávido, no seu lado da rede, esperando. Vi, no mesmo café, no mesmo balcão, a final de 1980. McEnroe não gritou tanto e perdeu. Um ano mais tarde, parece que os gritos o empurravam definitivamente para a vitória que, no caso dele, mais parecia uma vingança.

Talvez Björn Borg tenha sido o melhor jogador de ténis que alguma vez me passou em frente aos olhos. Do ténis como ténis, requintado e técnico ao pormenor, sem ser o ténis da física e do físico no qual, entretanto, se transformou._Talvez as duas finais entre McEnroe e Borg tenham sido o ponto mais alto do meu fascínio sobre esse jogo, a pouco e pouco diluído, a pouco e pouco desfeito entre novas realidades. Wimbledon para mim, foi entre 1980 e 1981, mesmo que tenha tido início em 1877.

John endemoinhado; Björn sereníssimo como uma alteza.

John gritando para o fiscal de linha que assinalava uma bola fora que ele teimava ser dentro: «You are an incompetent fool!»

O público: metade incomodado; metade divertido.

Um calor de ananases espalhava-se pelo Cais das Laranjeiras e o rio parava, escorrendo em suor.

 «There’s nothing championship about this tournament except its prestige», disse McEnroe no final, desprezando a própria vitória.

Borg saiu como entrara: sem um sorriso.

Depois, o americano avisou que não iria pôr os pés no habitual banquete de honra que tinha sempre lugar no encerramento do torneio. Preferiu ir a um pub beber umas cervejas com os amigos.

Não havia palavrão de John que pudesse tirar de Wimbledon a visão cerimoniosa de um estilo inconfundivelmente britânico, aquele estilo que nos convencemos que desapareceu há muito do mapa das convenções sociais mas, lá na ilha, neste lugar que é a Terra, tão simplesmente o planeta onde existe a Inglaterra, o tempo pára sempre que se compram morangos e as pessoas se dirigem, de pescoço erguido, na esperança de ver que homens e que mulheres receberão o troféu que diz, escrito na prata, com todo o peso de uma farronca mais do que centenária: «The All England Lawn Tennis Club Single Handed Champion of the World».

Pois, é isso mesmo, não é de Wimbledon, é do mundo…