Relação condena pedófilo absolvido em primeira instância

Numa decisão pouco habitual, o Tribunal da Relação de Lisboa condenou a oito anos de prisão um técnico de diagnóstico e terapeuta da fala acusado de abuso sexual de 53 crianças que tinha sido absolvido pelo tribunal de Sintra.

Um técnico de diagnóstico e terapeuta da fala numa instituição com convenção com o SNS e que foi absolvido em primeira instância da acusação de abuso sexual de 53 crianças acabou por ser ontem condenado no Tribunal da Relação de Lisboa, após recurso do Ministério Público (MP). Num volte-face que é raro acontecer, o arguido foi agora condenado a uma pena de 8 anos de prisão e suspensão de funções, além de uma indemnização de 25 mil euros a um dos menores, que terá de ser paga solidariamente coma instituição.

Marco Teixeira, hoje com 31 anos, tinha sido acusado em 2016 pelo Departamento de Investigação e Acão Penal de Sintra por 38 crimes de abuso sexual de criança, praticados no exercício das suas funções, sobre menores em instituições tuteladas pelo Estado.

Segundo a acusação do MP, o arguido atraía as vítimas – menores de 4 a 7 anos e com atrasos e dificuldades na fala – com supostos jogos «infantis» a que chamava «uma brincadeira de cócegas» ou «uma brincadeira de festinhas». Depois, comprometia-os a um pacto de silêncio e, à medida que ia conquistando a sua confiança, fazia outros avanços sexuais.

Com receio de vir a ser apanhado pela Justiça, o terapeuta escolhia as vítimas mais frágeis, geralmente as crianças mais pequenas e que assim teriam maior dificuldade em denunciá-lo, as quais, reencaminhadas pelos centros de saúde para o Instituto de Massagens Senra da Cunha, no Cacém. Era nesta instituição, que tem convenção com o SNS, pertencendo à rede de prestadores convencionados, que Marco Teixeira estava colocado e onde praticava os crimes.

Mas quando o processo chegou à fase de julgamento, os juízes do tribunal de Sintra deitam por terra a acusação do MP: apenas com base em três depoimentos para memória futura, que tinham sido realizados na fase de inquérito, num total de 53 vítimas, descredibilizou a prova e acabou por absolver o arguido.

No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ontem proferido, o colectivo de juizes (com Artur Vargas, como relator, e Jorge Gonçalves, adjunto) contraria o colega da primeira instância, argumentando que, apesar de nas declarações para memória futura haver «testemunhos que se mostram pouco verosímeis», não pode fazer-se a partir daí «o arredar em bloco e de forma integral do que foi narrado em todas por um número bem significativo de menores e se mostra com sentido unívoco». «Tal oblitera a lógica e a experiência comum, uma vez que muitas das crianças e dos pais nem sequer se conheciam entre si, frequentavam as sessões de terapia em dias da semana e horas diversificadas e até em local diverso das instalações do Senra da Cunha como acontecia com (…), em que ocorriam na residência própria, antes importando, como já se deixou expresso, destrinçar o que se mostra verosímil e credível», salienta-se na decisão.

O juiz relator não deixa de salientar o relato de outras das vítimas que o colega não valorizou: «Os demais menores foram categóricos, convergindo os seus relatos no essencial quanto aos comportamentos do arguido, sendo de salientar as declarações prestadas por F., bem detalhadas e circunstanciadas quanto ao modo como eram feitas as ‘cócegas’ aos meninos e às meninas, a posição em que estes se encontravam quando o arguido as fazia e até pormenorizando que havia meninos que ficavam contentes com as cócegas e outros não».

Em relação à apreciação negativa feita pelo juiz de primeira instância em relação ao trabalho dos elementos da PJ que investigaram o caso, o Tribunal da Relação também fez uma avaliação muito diferente: «Igualmente não se pode aceitar o entendimento do tribunal recorrido de que os inspetores da Polícia Judiciária, ao recolherem as declarações dos menores, terão neles criado falsas memória e tendo elas servido como linha orientadora das questões colocadas pela Meritíssima Juíza de instrução criminal no âmbito das declarações para memória futura, também estas estariam contaminadas, não correspondendo à realidade factual».

E explica: «Isto porque este juízo de não correspondência à verdade não assenta em factos objetivos, configurando apenas uma prévia construção mental presa a padrões fixos e inflexíveis, que tolda a visão e valoração de conjunto da prova produzida».