Merckx. O barão Amarelo

Viveu 97 dias com a camisola amarela vestida, detetaram-lhe um problema cardíaco, foi sempre um tímido e o Rei da Bélgica deu-lhe um título

Merckx. O barão Amarelo

A Volta a França está novamente nas estradas do Hexágono e nenhum outro ciclista se confundiu tanto com a Volta a França como Édouard Louis Joseph, O Canibal, ou Barão Merckx, porque sendo a Bélgica uma orgulhosa monarquia não deixa de premiar os seus heróis com os títulos nobiliárquicos que os monarcas têm mais à mão. Claro que Merckx, Eddy para os amigos, não se resumiu a cinco vitórias no Tour (1969, 1970, 1971, 1972, 1974) – em 1976 não ganhou porque um canalha, de gabardina, Nello Breton, o deitou ao chão e o socou no alto do Puy de Dôme. Acrescentou-lhes títulos atrás de títulos com o apetite desenfreado de canibal, como alguns gostavam de lhe chamar, entre os quais cinco triunfos no Giro de Itália (1969, 1970, 1971, 1972, 1974) e um na Vuelta (1973), para além de um não mais acabar de outras miudezas como a Volta à Suíça, a Volta à Catalunha, o Paris-Nice, o Dauphiné Liberé, a Volta à Flandres, o Paris-Roubaix, a Volta à Lombardia e até um Recorde Mundial da Hora para não gastarmos o resto das páginas a alencar as suas proezas.

Merckx é Merckx. Na banalidade da expressão há que fixar a fenomenal dimensão de um nome. Barão Amarelo? Não lhe fica mal, na peugada de um tal Manfred Albrecht Freiherr von Richthofen, ás da aviação da I Grande Guerra, que ganhou o epíteto de Barão Vermelho. Afinal, Eddy é, ainda hoje, o ciclista que mais dias passou com a camisola amarela de guia da Volta à França colada ao corpo, 97 no total.

Cinquenta anos após a primeira vitória de Merckx no Tour, este teve o seu início em Bruxelas, ali mesmo ao lado desse município do Brabante Flamengo com o nome de Meensel-Kiezegem onde, no dia 17 de junho de 1945, Jules Merckx e sua esposa, Jenny Pittomvils, trouxeram ao mundo um rapaz que lhes havia de dar água pela barba não fosse o caso de nem um nem outro a usar ou a ter, conforme as circunstâncias da natureza.

Encarregues a partir de certa altura de tomarem conta de uma mercearia que lhes foi deixada em herança em Woluwe-Saint-Pierre, um bairro da capital, Jules e Jenny foram dando conta da inquietação de Eddy. Basicamente, o futuro barão não parava quieto. Foi aconselhado a fazer desporto e, hiperativo como era, praticou uns poucos: basquetebol, ténis, boxe, ténis de mesa e futebol. Hoje em dia teria sido, provavelmente, carregado a doses cavalares de ritalina e passaria os dias em casa agarrado a um ecrã qualquer no qual poderia correr, sentado no sofá, a Volta à França à custa de indicadores e polegares. Teve mais sorte do que isso. Aos quatro anos, irritado por ter dado cabo dos joelhos e cotovelos numa queda de bicicleta, teimou que haveria de dominar para sempre os velocípedes. Passou a organizar corridas entre os miúdos da rua e a tentar imitar o seu ídolo Constant Ockers, um tipo de Antuérpia que passou duas vezes pela Volta à França e viria a morrer num estúpido acidente durante uma corrida em 1956. Cinco anos depois da morte de Ockers, Merckx, já com licença de ciclista de competição, cortava em primeiro lugar a meta da prova de Petit-Enghien, na Valónia, e nesse erguer de braços desenhou o seu futuro.

Um rapaz tímido Eddy Merckx sempre foi tido como um moço tímido. Podia erguer os braços nesse inconfundível momento das vitórias, mas era mais do género de enfiar as mãos nos bolsos e evitar espalhafatos. Para muitos é o maior ciclista de sempre e confesso que para a malta da minha geração, que seguia com paixão as batalhas contra Thevenet, Zoetmelk, Van Impe, Gimondi, o seu eterno segundo Raymond Poulidor (injustamente colado a uma imagem de vencido que não faz jus à sua categoria), com Joaquim Agostinho pelo meio, não é difícil aceitá-lo como tal. O holandês Joop Zoetmelk, que também venceu o Tour e o Giro, não hesitava em dizer: «Em primeiro fica o Merckx; depois lutamos todos pelo lugar a seguir ao dele».

Como quase todos os ciclistas do seu tempo, o doping bateu-lhe à porta, por três vezes, em 1969, quando liderava a Volta a Itália, em 1973, na Volta à Lombardia e em 1977 na Fléche Wallone. De cada vez que lhe detectaram anfetaminas, norefedrina ou pemolina, encolheu os ombros. Tinha justificação para os testes positivos: medicamentação subscrita pelo médico. Os castigos eram pouco pesados. Não ultrapassavam, geralmente, uma multa e um mês de suspensão. Com o rosto fechado, o Canibal teimava: «Sempre fui um corredor limpo! Não preciso de tomar nada para vencer!».

Levantaram-se teorias conspirativas, houve até uma reportagem publicada num periódico francês que alertava para uma tentativa de arrasarem com o seu nome e que a urina analisada não pertencia a Eddy. Não ficou manchado pelos episódios. Ficou marcado, isso sim, pelo coração, algo que não seria de estranhar num hiperativo que se continha de tal forma na imagem que transmitia para o exterior que passava por um homem calmo. «Faux calme», como dizem os franceses. 

Em 1968, antes do início do Giro, o dr. Giancarlo Lavezzaro, cardiologista de prestígio, tornou pública a deficiência de Merckx: cardiomiopatia hipertrófica não-obstructiva. Eddy pedalou furiosamente contra o diagnóstico e contra o próprio coração. Cerrou os dentes e os punhos e foi ganhando, fazendo dos outros sempre segundos atrás dele. Só em 2013 lhe foi implantado um pace-maker e realizada uma cirurgia contra as suas crónicas dores de estômago. Pudera! Engolir os nervos não faz bem à digestão de ninguém. Ao ser aplaudido por milhares e milhares de pessoas em Bruxelas, no passado dia 6, quando começou a 106.ª edição do Tour, limitou-se a murmurar, sem tirar as mãos dos bolsos: «Não é, de facto, um dia igual aos outros…».