«Apesar de comer tanto açúcar, é uma pessoa amarga»

A frase citada faz parte da ilustração de um vidrão na zona da Av. Alexandre Herculano, em Lisboa, que transcreve parte do conto A Contradição Humana de Afonso Cruz: «Apesar de comer tanto açúcar, é uma pessoa amarga».

A Contradição Humana é um livro aparentemente para crianças, mas talvez se destine mais a adultos de espírito jovem. Ilustrado pelo próprio autor a preto, branco e encarnado, postula que «Dentro das (…) pessoas habitam as maiores contradições».

É verdade que há muitas contradições no mundo, como as apontadas no livro e outras. Refere Afonso Cruz que, no espelho, o lado direito se torna esquerdo mas a parte de cima não se torna na parte de baixo. É óbvio que se trata de uma contradição, pelo menos, aparentemente.

Uma contradição é uma incompatibilidade lógica entre duas ou mais proposições. Afirmou Aristóteles que «Não se pode dizer de algo que é e que não é no mesmo sentido e ao mesmo tempo». Mas, parece-me que a contradição mais óbvia no mundo é o facto de 20% da população humana consumir mais de 80% da riqueza produzida e os restantes 80% tentarem sobreviver com 20% dessa riqueza!

Essa contradição prende-se já com a contradição humana referida por Afonso Cruz, numa paronímia da famosa obra filosófica A Condição Humana, de Hannah Arendt.

Ora, a contradição é uma característica inerente ao ser humano. Todos nós temos momentos em que, mesmo comendo muito açúcar, somos pessoas amargas ou, por gostarmos tanto de pássaros, os prendemos numa gaiola, ou, ainda, por gostarmos tanto de flores lhes tiramos a vida para as podermos admirar numa jarra.

Como com todas as características de que não gostamos, é difícil aceitar as nossas próprias contradições e, como tal, optamos por criticar o comportamento dos outros. Exorcizar os nossos defeitos, apontando-os nos outros é a nossa forma predileta de fingir que somos perfeitos.

Ora, ninguém é perfeito ou sempre coerente. Mesmo as pessoas que se distinguem por serem modelos de atuação com um elevado grau de coerência são capazes de nos surpreender com uma reação ou um comportamento que não esperaríamos. Nesses momentos sentimo-nos traídos, sentimos que os outros são tão humanos quanto nós e não há nada de que gostemos menos do que perceber a imperfeição do ser humano, logo a nossa própria imperfeição.

Olhar os outros, o mundo e a vida sem filtros de expectativas sobrevalorizadas é algo que pouco praticamos. Mas é talvez a melhor forma de equilibrarmos o que em nós ecoa a nossa humanidade, porque, como diz Tolentino Mendonça: «A imperfeição humaniza-nos». E acrescenta: «Ouvi aí umas duzentas vezes o poeta Tonino Guerra citar o verso de um monge medieval: “É preciso ir além da banal perfeição”. É isso mesmo: a perfeição pode ainda ser um caminho que trilhamos pela superfície ou constituir uma ilusão que nos impede de aceder ao verdadeiro e paradoxal estado da vida. Levamos tanto tempo até perder a mania das coisas perfeitas, até nos curarmos do impulso que nos exila no aparente conforto das idealizações, ou finalmente vencermos o vício de sobrepor à realidade um cortejo de falsas imagens!».

Em vez de, na prateleira, colocarmos o vaso quebrado com a sua imperfeição para trás, tentando esconder a sua falha e aparentando uma falsa perfeição, saibamos, sem medo, mostrar as nossas imperfeições e, com elas, aceitarmo-nos e redescobrirmo-nos. Como diz Leonard Cohen: «Em tudo há uma falha, é por ela que entra a luz».

Viver a realidade é bem melhor do que viver uma ilusão. Viver hoje é bem melhor do que viver na miragem do passado ou na expectativa do futuro. Saibamos, pois, viver hoje.