Payne. O mágico que hipnotizou a equipa dos Paralíticos

O Hinckley Athletic jogava tão mal que os adeptos gritavam: «C’mon the Paralytics!». Em desespero, resolveram chamar Richard Payne, o maior hipnotizador de Inglaterra. Pôs em transe seis jogadores, o povo entusiasmou-se, e a equipa voltou a perder.

Andrew Ward, uma daquelas figuras únicas que soube sempre confundir futebol e literatura sem que daí viesse mal ao mundo, bem pelo contrário, por muito que irritasse alguns desses intelectuais de pacotilha que acham que a literatura paira muito acima de coisas tão terrenas e popularuchas como o nobre jogo bretão, conta este episódio num dos seus livros: preocupados com a inoperância do seu avançado-centro, os dirigentes de um clube contratam um hipnotizador para tentarem resolver o intrincado problema dos golos desaparecidos. O rapaz senta-se num banquinho, fixa o relógio a abanar de um lado para o outro, entra em hipnose total, e ouve, muito ao longe, a voz murmurante do mestre – «Quando despertares terás a força de Maradona, a acutilância de Gary Lineker e a eficiência de Ian Rush». Depois, estalou os dedos. O moço esfregou os olhos e percebeu-se que estava ali um homem novo. Feliz, o treinador mandou-o equipar-se e entrar em campo. «Nem penses nisso!», exclamou ele. «Sou bom demais para jogar na porcaria desta equipa!». E pôs-se a milhas.

Ward escreve em tom de anedota, mas há anedotas que têm o seu quê de realidade. E esta é uma delas. Claro que, se falar aqui de um tal de Hinckley Athletic Club, o paciente leitor extrapolará a sua infinita paciência e pensará que entrei definitivamente no campo da pilhéria. Mas, vamos com calma. OHinckley pode ser uma quase inexistência mas foi nobremente fundado nos idos de 1889 com o nome de Hinckley United sobre as cinzas do moribundo Hinckley Town. Hoje chama-se outra vez Hinckley United, arrasta-se pelas divisões amadoras de Inglaterra, mas no tempo em que foi Hinckley Athletic passou por um momento em que a inépcia dos seus jogadores levaram os responsáveis pelo clube ao desespero. E o desespero foi de tal ordem desesperante, se me permitem a aliteração, que recorreram aos serviços de Richard Payne. E ninguém recorria aos serviços de Payne sem ter um motivo muito, muito forte para isso.

Quem era Richard Payne?

Aprendi, nos primórdios da minha vida nos jornais, que jornalista não faz perguntas às quais não apresente, de imediato, resposta. Afinal, como dizia o velho mestre Carlos Pinhão, o leitor não vai comprar jornais para que lhe coloquem questões. Estou preparado. Vamos a isto!

Richard Lance Payne nasceu no dia 19 de Março de 1913, precisamente em Hinckley, essa terriola do Leicestershire que alberga o clube do qual já aqui falei. Terá vindo ao mundo com dons inacreditáveis, segundo alguns mais optimistas; terá nascido na maior das banalidades intelectuais segundo outros menos optimistas. A verdade é que, desde miúdo, foi um daqueles inquietos que desrarruma tudo em seu redor, sobretudo certas formas mais conservadoras de pensar. Aos 11 anos já se considerava um mágico com estatuto suficiente para exibições públicas e tratou de sair da escola onde andava para, a meias com um biscate como ajudante de açougueiro, avançar para uma carreira profissional intitulando-se The White Wizzard, ventríloquo e mágico, cujo número mais arriscado era o de fazer um porquinho-da-Índia sair intacto de uma caçarola cheia de lâminas afiadíssimas ao mesmo tempo que fazia com que um boneco meio estúpido chamado Timmy largasse umas piadolas de jocosidade bastante duvidosa.

Aos 16 anos, o jovem Payne juntou-se ao pai para estudar a fundo a arte do hipnotismo e, em pouco tempo, já era capaz de fazer com que meia-dúzia de vítimas se sujeitassem a balouçar para trás e para a frente contra a sua vontade.

AIIGrande Guerra obrigou Richard a ir bater com os costados nos Royal Marines e no seu currículo não consta que tenha hipnotizado nenhum nazi minimamente influente. Livre da farda em 1945, atirou-se à sua arte com as ganas de um lobo esfaimado e, três anos mais tarde, já fazia demonstrações convincentes no Nuffield Center de Adelaide Street, em Londres. Deixou crescer um bigode imponente e aparecia com frequência em cartazes publicitários sob a frase bombástica Seeing is Believing.

Nesta fase da existência de ambos, já Richard Lord Payne, como decidiu apelidar-se, ultrapassara de largo a importância da sua Hinckley natal. Era uma figura popular e ainda mais popular ficou quando, a partir de 1949, um filme sobre as suas capacidades hipnóticas, realizadao pela Pathé Pictorial, surgiu nas salas de cinema à laia de documentário que precedia a película principal. Uma tirada solene sublinhava a importância da hipnose: «Já devia ter sido considerada há mais tempo como um método fundamental da medicina. Está provado que o hipnotismo serve para auxiliar dentistas a extrair dentes e Richard Payne tem colaborado com vários. Ainda recentemente, Mr. Payne colocou em sonolência profunda todas as pessoas presentes numa sala de teatro de Birmingham. Noutro espetáculo, convenceu um voluntário que era feito de aço e, assentando-lhe a cabeça e os pés entre duas cadeiras separadas, este suportou sem custo o peso de três homens em pé sobre o seu tronco».

Das críticas ao futebol

Há que dizer que a rapaziada da sua infância e adolescência em Hinckley seguia boquiaberta o sucesso do moço que fora, em tempos, um talhante de avental sujo de manchas de sangue de vaca, porco e de cabrito, para não falar de uma variedade de aves. Já o Dr. J. Sidney Von Pelt, fundador da British Society of Medical Hypnotists, não estava assim tão convencido das verdadeiras virtudes de Richard. E era de opinião de que o próprio Payne as não levava a sério, tal como deixou transparecer nas páginas do British Journal of Medical Hypnotism: «Payne is a stage hypnotist with no proper medical training (who) make exaggerated claims and profess to be able to cure all sorts of complaints. He his there to provide fun, entertainment and laughter».
Payne esteve-se nas tintas.

Divertimento, entretenimento e riso davam-lhe dinheiro suficiente para não se preocupar grandemente com a opinião do Dr. Pelt. Inventava novos números, criava momentos circenses, enchia salas e agradecia a profusão dos aplausos.
Foi então que voltou a Hinckley.

Decorria o mês de Abril de 1949 e o Hinckley Athletic dissolvia-se em derrotas consecutivas. Desde Janeiro, uma vitória apenas. As exibições da equipa era tão degradantemente fracas que o público, nas bancadas, soltava o seu grito de apoio com um laivo de humor profundamente britânico: «C’mon the Paralytics!».

Na véspera de defrontar o Bedworth Town, para a Birmingham Combination League, Payne foi chamado de emergência para auxiliar o clube da sua terra. O Hinckley Times berrou em manchete: «RiccharPayne, billed as Britain’s Gratest Hypnotist, will conduct an amazing experiment with members of Hinckley’s Athletic team. Don’t miss it!».
Como se coubesse na cabeça de alguém faltar a um compromisso desta envergadura.

Trezentos adeptos, assim mesmo, por extenso, apinharam-se na sala apertada do Working Man’s Club Hall para verem Payne fazer um milagre em seis dos jogadores titulares da equipa. Depois de os ter mergulhado em estado hipnótico, Richard foi soltando a sua voz gutural: «You will win! You will win!».

O efeito foi alucinante. O médio-esquerdo doAthletic levantou-se de súbito, num transe total, e chutou a sua própria boina de encontro a uma das paredes da sala.

Os presentes soltaram «OOOHS!» de respeito e admiração.

Richard Payne afirmou que o seu trabalho não ficaria concluído sem uma visita ao balneário do clube no dia seguinte, Terça-Feira Gorda, para deixar a sua marca positiva no local. Sentia que a onda eléctrica que dele emanava poderia alterar de vez o espírito negativo dos «Paralíticos», como os adeptos lhes chamavam. Afinal, não era à toa que o documentário realizado pela Pathé assegurava: «O homem que é capaz de o fazer acreditar em tudo!».

Como é costume nestas coisas do além (ou quase), os incréus não demoraram a fazer-se ouvir. Com o mesmíssimo humor britânico da contraparte: «Ora, trazem um tipo pôr meia equipa a dormir. A dormir anda a equipa toda desde o início do campeonato».

Pode ser que Payne tenha escutado estas vibrações negativas através dos seus sentidos tão absolutamente apurados. Ou pode ser que, basicamente, não percebesse nada de futebol, algo bastante mais crível. Que não chegou a visitar o balneário do Hinckley Athletic, isso é certo e está registado. E não apareceu no campo quando a equipa entrou ao som de um novo grito: «Just one more, the Hypnotics!».

A derrota por 1-2 serviu, como se esperava, para a imprensa apepinar Payne até ao subconsciente: «No Dream Win for Soccer Team» (Daily Mail); «The Hypnotised Soccer Team Did Not Win» (Daily Mirror); «Hypnotist Sees His ‘Fluence Team Lose» (Daily Express).

Richard, que foi uma personagem digna de um livro de Jerome K. Jerome ou de Tom Sharpe, viu o seu prestígio abalado mas rapidamente deu a volta por cima e, de grande hipnotizador, passou a escapista, à moda de Houdini. Para ir compondo as contas ao fim do mês, abriu uma hipnoterapia em Oldham, na Union Street e, como entretenimento, tornou-se membro de uma banda que alegrava as noites no vizinho Shakespeare Hotel, tocando um instrumento inventado por si, o mazawatee, mistura de baixo com um bule de chá envolto por uma corda só e que deveria servir de acompanhamento aos solos de piano. O som podia ser horrendo, mas o bar do hotel ficava à pinha todas as noites: «We make an abominable noise – but we pack ’em in».

Sabendo das dificuldades porque passava a equipa local, o histórico OldhamAthletic, mergulhados nos precipícios da IVDivisão, Richard Payne apresentou-se no Boundary Park e ofereceu, prestimosa e gratuitamente os seus serviços de hipnotizador. Disseram-lhe que não estavam para aí virados.Preferiam safar-se à custa dos seus próprios meios. Payne não deixará de ter sentido uma certa ingratidão… Mas o Oldham sobreviveu.