Os conselhos de Calouste Gulbenkian para o seu neto

A correspondência entre o magnate do petróleo e o seu neto, que estudava em Londres, acaba de ser publicada pela Tinta da China. ‘Quero que se torne um true gentleman’, escreveu-lhe o avô, que também lhe dizia o que devia e o que não devia ler, e chegava até a censurá-lo com rispidez

A secretária pessoal de Calouste Gulbenkian costumava recordar que nunca viu o patrão vestido de outra forma que não fosse o fato completo. O Senhor Cinco Por Cento era um homem extremamente reservado e convencional – e foram as virtudes dessa postura discreta e cautelosa que tentou transmitir ao neto Mikaël quando assumiu, à distância, a responsabilidade pela sua educação.

Uma seleção da correspondência trocada entre Gulbenkian e o neto (a que se juntam missivas referentes à educação do rapaz) acaba de ser publicada pela Tinta da China no volume A Educação do Delfim – Cartas de Calouste Gulbenkian ao seu Neto (seleção de João Vieira e Martin Essayan, filho de Mikaël).

As cartas abrangem o período 1941-1945, ou seja, os anos da Segunda Guerra Mundial, durante os quais o milionário procurou refúgio em Lisboa. Nascido em Londres, Mikaël passou a infância com os pais em Paris, até ser mandado de volta para Inglaterra para estudar. Entretanto, com a ocupação de Paris pelos nazis em maio de 1940, os pais ficaram retidos na capital francesa, e a comunicação era quase impossível. Assim, o avô do rapaz dispôs-se a aconselhá-lo e a custear os seus estudos – mas, como qualquer homem de negócios, já que ia pagar, também queria ter uma palavra a dizer.

Os escândalos de Rita Mikaël Essayen (1927-2012), que viria a tornar-se administrador honorário da fundação, era filho de Rita, a filha mais nova de Calouste e Nevarte Gulbenkian. Ao contrário de tudo o que o patriarca defendia, Rita apreciava o estilo de vida boémio. «Os ‘escândalos de Rita’ (como lhes chamava a mãe) principiaram em 1932, quando ela tinha trinta e dois anos, e continuaram até 1937», escreveu Jonathan Conlin na biografia O Homem Mais Rico do Mundo (ed. Ojectiva). «Quando este ou aquele amigo dispunha de dinheiro, a vida era um longo passeio de boa comida e vinho, drogas e clubes nocturnos, com as noites a culminar ocasionalmente em estadia no posto da polícia», continua Conlin. «Numa carta dirigida ao tio Yervant, Rita descreveu uma festa em casa em que o único lavabo disponível consistia numa só torneira de água fria mais os bosques circundantes. ‘Tudo encantadoramente condimentado com AAAAAMOR, mas, naquelas circunstâncias, repugnante».

A realidade é que já antes da guerra este estilo de vida em busca de prazer imediato a afastara do filho. Quando ele tinha onze anos, Rita estava apaixonada por um pintor russo e, segundo a família, descurava grosseiramente a educação do filho. «‘Actualmente nada – nem o filho, nem o marido, nem a família – tem qualquer influência sobre ela, só este homem’, contou Nevarte em 1938. Chocada com o ‘modo de vida deplorável e boémio dela’, Nevarte insistiu que uns meros cinco minutos da ‘maneira de falar dela’ teriam como consequência ‘danos terríveis’ em Mikhael». Já a própria queixava-se de que a mãe desejava, acima de tudo que «a Rita não se divirta mais do que ela própria se divertiu!».

True gentleman «Guarde as minhas cartas num pequeno dossiê, uma vez que irei escrever-lhe com frequência. Espero que as leia e releia muitas vezes», recomendava Calouste Gulbenkian ao seu neto no final de uma missiva datada de 21 de junho de 1942. Na mesma carta dizia-lhe: «A inteligência, os sucessos escolares, por si só, não garantem o brilho da sua carreira futura. Quero que a partir de agora adquira o hábito do recolhimento e da reflexão, e isto em todos os sentidos. A inteligência, quando é mal orientada, e não a acompanham qualidade de reflexão e de moral, pode levar aos piores desastres.

É preciso que, na sua escola, o respeitem não apenas por ser um rapaz inteligente, mas sobretudo pelas suas qualidades morais de modéstia, simplicidade, disciplina e boa camaradagem». As exortações à retidão são uma constante nas palavras que o velho milionário dirige ao neto. Profundamente religioso – e observante dos preceitos da Igreja Arménia, apesar de os seus casos extraconjugais serem sobejamente conhecidos -, a 24 de Agosto de 1942 Gulbenkian aconselhava o jovem a ler livros santos: «Os princípios morais e de honra neles contidos são para o homem a melhor couraça contra os embustes e as inevitáveis tentações da vida».

Em paralelo, o homem de negócios ia recebendo relatórios sobre o desempenho escolar do neto. Incitava-o a esforçar-se e a trabalhar, e chamava-lhe a atenção para os erros de ortografia nas cartas. Acima de tudo, queria que o rapaz estivesse preparado para «alcançar uma carreira de sucesso». Noutra ocasião, confessava: «Apercebo-me agora de que a carta já vai longa, e para a concluir dar-lhe-ei simplesmente o resumo daquilo que desejo para si: que se torne um true gentleman».

Leituras e censuras Um dos aspetos da educação de Mikaël de que Calouste Gulbenkian se ocupava ciosamente eram as leituras que o neto fazia. Gulbenkian censurava-o por ler «detective stories»: «Essas leituras, acredite-me, são falsamente atraentes, nada ensinam que valha a pena aprender, e além disso paralisam o pensamento e a capacidade de reflexão». Uns meses mais tarde (em dezembro de 1942), voltava a aconselhar em tom reprovativo: «Não me agrada que leia Dumas, nem sequer Victor Hugo, nesta fase da sua vida. Quem lhe aconselhou Dumas? Este autor é para a História mais ou menos o mesmo que as suas detetive-stories, e nas suas aventuras de capa e espada nunca se preocupou em respeitar a verdade».

E continuava: «Confie em mim, leia a História de França de Michelet, que é muito bem escrita e interessante. Mais tarde indicar-lhe-ei outras obras sobre Luís XIV e Napoleão I.

E porque não ler também The Rise and Fall of the Roman Empire, de Gibbon, é uma obra admirável. A época romana é fundamental para o estudo da História. Aconselho-o igualmente a debruçar-se sobre o estudo da Grécia Antiga. […]

Além disso, e para descontrair mas igualmente interessante, talvez possa procurar a obra de Maeterlinck sobre a vida das abelhas, assim como as do naturalista Fabre».

Quem não gostou da intromissão foi O.G. Bowlby, diretor da residência onde Mikaël vivia enquanto estudava no colégio de Harrow, que escreveu assim a Calouste Gulbenkian: «Nenhum de nós consegue compreender que se levantem objeções à leitura de romances. Talvez não interpretemos a palavra da mesma maneira, mas se excluirmos os romances, no sentido em que entendemos a palavra, então boa parte daquilo que geralmente se considera a melhor literatura inglesa ficará imediatamente de fora. Refiro-me a autores clássicos como Jane Austen, Scott, Stevenson, Thackeray, Dickens e muitos, muitos outros. O Reitor ficou também surpreendido pelo facto de ter excluído Victor Hugo. Esperamos sinceramente que reconsidere a sua opinião sobre isto».

Uma ‘carta verdadeiramente vergonhosa’ Embora garantisse que as suas cartas eram motivadas pelo afeto que dedicava ao seu neto, Gulbenkian podia ser muito duro quando, à distância, percebia que algo não estava a ser feito de acordo com as suas indicações. O magnata regia-se por princípios muito rígidos – e a vaidade e a arrogância eram defeitos que o deixavam, embora prezasse muito o autocontrolo, praticamente fora de si. Pode-se testemunhar isso num comentário que dirigiu a Miss Mends (uma antiga secretária de Gulbenkian encarregada de acompanhar a estadia de Mikaël em Londres e de zelar pelo seu conforto), a propósito de uma carta de Mikaël: «Esta carta indica uma considerável presunção e vaidade, e carece da elementar consideração e afeto que um rapaz da idade dele deveria nutrir pelo seu Avô, que tanto se tem esforçado pela sua felicidade moral e material.

É muito triste, mas achei esta carta verdadeiramente vergonhosa e desanimadora. Reflete uma vaidade pueril, sentimento que, lamento dizê-lo, caso o Mikaël não o corrija, não o levará muito longe, independentemente das realizações académicas». 

Noutra ocasião, igualmente incomodado, escreveu ao neto: «As poucas palavras de cortesia que se limitou a dirigir-me como resposta não me satisfizeram. Siga o meu conselho, saiba erradicar de si esses sentimentos de vaidade e presunção, que não são próprios de uma verdadeira distinção e de uma verdadeira inteligência».

Mas a reação mais vigorosa dá-se quando Mikaël pede a opinião do avô sobre a sua confirmação na Igreja Anglicana: «Com vista ao seu interesse pessoal e baseando-me nas tradições seculares da nossa família, não hesito em responder-lhe que considero indigno de um homem de caráter renunciar à Fé que lhe foi legada pelos seus antepassados, seja ela qual for.

Também não hesito em dizer-lhe, com toda a veemência, que o Mikaël perderia a admiração que nutro pela sua personalidade caso, agora ou no futuro, tomasse uma tal decisão. […]

O Mikaël não deve esquecer que é o herdeiro das nossas tradições, do meu nome. É o descendente de uma antiga linhagem de antepassados cuja memória é evocada em todo o Oriente, nas capelas, nas igrejas, nas instituições consagradas à sua Fé. Mais tarde, talvez o Mikaël descubra por si mesmo esta evocação do nosso passado no Templo do Santo Sepulcro […]. Compreenderá então melhor quão repreensível seria renegar um tal passado de Fé e de lealdade às tradições familiares». Quando lhe chegava a mostarda ao nariz, Calouste Gulbenkian podia ser muito ríspido – mesmo que o alvo das suas críticas fosse um adolescente de 16 anos e seu neto.

Desígnio cumprido Nas últimas linhas de A Educação do Delfim, pode ler-se o final de uma carta de Gulbenkian para Mikael, datada de 19 de abril de 1945: «Compreendo perfeitamente a sua atual inclinação pela Advocacia. Não tenho qualquer objeção a levantar e pode contar com o meio apoio». Com o aval do avô, Mikaël Essayan licenciou-se em Direito. Viria a trabalhar na Iraq Petroleum Company, assumingo um cargo de relevo na Ordem dos Advogados britânica. Entre 1981 e 2005 foi administrador da Fundação Calouste Gulbenkian. Pode considerar-se que o desígnio do avô – que desejava para ele «uma carreira de sucesso» e que se tornasse «um true gentleman» – foi cumprido.

Curiosamente, já com os filhos as coisas correram de forma diferente. Rita, como vimos, procurava divertir-se a todo o custo. Ainda assim. no final da vida «manteve-se discreta», segundo Jonathan Conlin, mesmo continuando «a desfrutar de uma animada vida social». Nubar, o filho mais velho, que tinha sido um aluno brilhante e dono de duas licenciaturas, trabalhou bastante em negócios com o pai – donde resultaram conflitos frequentes e por vezes violentos. Porém, acabaria por se tornar conhecido sobretudo pelo seu lado de playboy e bon vivant. Adorava mulheres, boa comida e bons carros. Quando o pai morreu, mandou fazer três Rolls Royces personalizados e no final da vida dava que falar por fazer-se deslocar em Londres num carro adaptado, que era metade táxi e metade carruagem.