Duas almas gémeas…

Por alguma razão, António Costa e Rui Rio se visitavam e cumpliciavam enquanto autarcas, à frente das duas primeiras câmaras do país. São parecidos no feitio, na irritabilidade à flor da pele, suportam mal a crítica (e os media desafetos…), apreciam o séquito e nunca conseguiram mostrar obra de vulto.  Haja quem consiga apontar uma…

Por alguma razão, António Costa e Rui Rio se visitavam e cumpliciavam enquanto autarcas, à frente das duas primeiras câmaras do país. São parecidos no feitio, na irritabilidade à flor da pele, suportam mal a crítica (e os media desafetos…), apreciam o séquito e nunca conseguiram mostrar obra de vulto. 

Haja quem consiga apontar uma ideia original ou um projeto relevante em ambos, iniciado ou concluído durante os respetivos mandatos. Um deserto. 

Costa, em versão populista de ‘proximidade’, inventou em outubro de 2010 um gabinete de trabalho no Intendente, a pretexto de «não estigmatizar» os residentes locais, do qual só houve eco mediático no dia da inauguração. A sua marca de ilusionista já se desenhava. 

Rio distinguiu-se ao afrontar o então ‘todo-poderoso’ Pinto da Costa, eterno presidente do FC Porto, mas perdeu-se no seu próprio labirinto, ao estilo ‘feitor de quinta’, transformando a Câmara em trincheira contra quem ousasse opor-se-lhe. 

Controverso no Bairro do Aleixo, falhou no Mercado do Bolhão e na reconversão do Palácio de Cristal. E elegeu os media como ‘adversários de estimação’. Continua igual.

O reencontro de ambos em S. Bento, quando Rio, recém-eleito líder do PSD, foi jurar fidelidade a Costa – ‘assinando de cruz’ acordos de regime com um aperto de mão -, selou uma vassalagem antiga.

O episódio teve antecedentes. Em 2014, antes das legislativas de que o PS saiu derrotado, já ambos admitiam um «acordo de regime ou um acordo de governação a 10 anos», com Costa a sonhar ser primeiro-ministro e Rio já aspirante a líder do PSD. 

Quatro anos depois deste ‘namoro’, Rio cumpriu e ofereceu de bandeja, a troco de nada, a convergência dos sociais-democratas em matérias tão sensíveis como a descentralização e o futuro quadro comunitário de apoio, envolvendo os fundos europeus.

Sabe-se qual foi a solução encontrada por Costa para iludir a humilhação eleitoral e chegar a primeiro-ministro, ao arrepio de todos os princípios e da prática política seguida até então pelo PS. 

O certo, porém, é que, apesar da desastrosa governação, a ‘geringonça’ vingou e sobreviveu uma legislatura, beneficiária do pronto-socorro que tem sido Marcelo Rebelo de Sousa e à boleia da apatia de Rio na oposição.

Um dia se fará a história da coligação contranatura que se instalou no país, enganando-o com ‘papas e bolos’ e muitos afetos, enquanto se apoderava do poder na sombra, infiltrando os ‘peões’ no aparelho do Estado e nos media.

Costa tentou ainda ‘exportar’ o modelo da ‘geringonça’, quer na eleição do presidente da Comissão Europeia, quer na formação do no Governo espanhol, de Pedro Sánchez. 

No primeiro caso, teve de ‘engolir em seco’ e veio de Bruxelas com as mãos a abanar. No segundo, ‘ouviu’ de Sánchez um recado, via Twitter, que deveria envergonhá-lo.

Falhada a investidura, por recusar as exigências do Podemos, escreveu ele: «Se para ser presidente [do Executivo] devo renunciar aos meus princípios e formar um Governo sabendo que não será útil ao meu país, elejo proteger Espanha». 

Mas a sedução do poder à vista foi mais forte. E deu uma inesperada cambalhota, propondo a Iglesias uma solução ‘à portuguesa’. 

Mal aconselhado imitou Costa, ‘subiu ao muro’ e, prevalecendo-se da lógica aritmética, também quer ‘salvar a pele’ e arrastar a Espanha para uma aliança com as forças radicais de esquerda, na base de ‘compromissos programáticos escritos’, sentando à mesa do Orçamento organizações que nunca renunciaram ao estalinismo ou ao trotskismo. 

Por cá, com o amparo presidencial e a ajuda de uma oposição fraca, Costa conseguiu alijar as culpas dos governos socialistas na pré-bancarrota de 2011 e na austeridade imposta pela troika, que lhes cabem por inteiro.

Sobreviveu ainda, airosamente, aos trágicos incêndios de Pedrógão, à devastação do Pinhal de Leiria, ao roubo de armas e munições em Tancos ou ao colapso da estrada nas pedreiras de Estremoz, além de ter passado nos ‘intervalos da chuva’ pelas cativações do ministro das Finanças, que arruinaram o Serviço Nacional de Saúde e outros serviços essenciais do Estado.

Logrou, finalmente, que o PS e o Governo não ficassem chamuscados com a pesada acusação deduzida pelo Ministério Público contra o seu antecessor, José Sócrates, apesar de contar no Executivo com vários atores dessa época negra. Tudo somado não é pouco.

Com a falta de memória que caracteriza boa parte da sociedade portuguesa – e a sua crónica dificuldade em ler os sinais -, as previsões apontam para que o PS seja o vencedor das eleições em Outubro. 

Pelo menos, as sondagens (embora tenham errado estrondosamente em 2015), só hesitam entre uma vitória simples e a maioria absoluta. 

O efeito dessa ‘boa onda’ já se faz sentir, agravando os tiques de arrogância de alguns governantes – como se viu recentemente com Eduardo Cabrita, a propósito da surreal distribuição pela Proteção Civil de ‘golas’ inflamáveis às populações em risco – ou com o próprio primeiro-ministro em exercício, a transferir para os autarcas o ónus da proteção dos respetivos territórios, como se o Estado não existisse e o Governo não tivesse nada com isso. 

Não é de estranhar, em tal contexto, que até um académico discreto e antigo ministro, como Miguel Poiares Maduro, interrompesse o silêncio para advertir que o que mais teme «é uma mexicanização do nosso regime». 

Em maio deste ano, o Presidente da República, fiel à sua irreprimível vocação de comentador, avisou, premonitório, que «há uma forte possibilidade de haver uma crise na direita portuguesa nos próximos anos», antevendo o seu papel como «importante para equilibrar os poderes». 

O diagnóstico de Poiares Maduro não andará longe da realidade. Quanto a Marcelo, em caso de maioria absoluta socialista, terá escassa margem para ‘equilibrar os poderes’. E será a primeira vítima, ficando cercado por uma esquerda que acarinhou e protegeu. 

O país verificará, então, como funciona um projeto de poder sem contrapesos. Rui Rio será inexoravelmente enxotado do PSD – se o que restar do partido ainda tiver ânimo para tanto -, e António Costa poderá celebrar a intuição política e moldar o país à sua vontade soberana, sem maçadas de oposição, de media hostis ou de órgãos de Estado empenhados em cultivar a independência. 

Na Ericeira, Sócrates terá boas razões para sorrir. Aliviado…