Brandos costumes

Alguma vez houve em Portugal assassínios em massa como os praticados no tempo de Estaline? Ou um genocídio como o perpetrado por Hitler?

Um destes dias, a caminho de casa, liguei o rádio do carro. Reconheci a voz pomposa e bem timbrada de Joana Amaral Dias, que falava do seu livro recentemente publicado sobre os grandes criminosos portugueses. E dizia que essa ideia de sermos um país de ‘brandos costumes’ é uma invenção do Estado Novo para a sua propaganda.

Ora, não se percebe bem como pode essa frase servir de propaganda a um regime.

Ela foi dita em 1937 por Salazar, a seguir ao atentado à bomba de que foi alvo por parte dos anarquistas, e do qual se safou por pouco.

Ao dizer que somos um país de brandos costumes, Salazar queria simplesmente sublinhar que atos violentos como aquele nem sequer estavam na nossa tradição.

Curiosamente, um dia depois de ter ouvido aquela conversa na rádio, um psicólogo que fala na CMTV repetia, convictamente, a mesma ideia: os portugueses não são um povo de ‘brandos costumes’, antes pelo contrário.

Ora, é preciso não ter lido um único livro de História para dizer uma coisa dessas.

Alguma vez houve em Portugal um terror como o que se seguiu à revolução francesa? Ou assassínios em massa como os praticados no tempo de Estaline na URSS? Ou fuzilamentos a torto e a direito como os que se viram na guerra civil de Espanha? Ou um genocídio como o perpetrado por Hitler contra os judeus? Ou uma chacina como a verificada na China no tempo de Mao? Ou, mais recentemente, a brutalidade animalesca que se observou na guerra da Bósnia? Para não falar das mortandades em África, onde morrem pessoas aos milhares.

Alguma vez tivemos isso em Portugal? Ou parecido? A guerra civil de 1832-34, que foi o episódio mais violento da nossa história recente, não se comparou, nem de perto nem de longe, a nenhum daqueles episódios.

E, depois disso, o 5 de Outubro foi uma brincadeira, com umas tropas na Rotunda a resistirem a um simulacro de ataque das forças leais ao Rei – e a Monarquia a cair quase sem derramamento de sangue. E o 28 de Maio foi um passeio de Braga até Lisboa. E o 25 de Abril foi o que se sabe.

A propósito do 25 de Abril, vi esta semana na RTP um magnífico documentário sobre a ‘assembleia selvagem’ do MFA que se seguiu ao ataque ao RAL 1 em 11 de Março de 1975. Documentário onde foi revelado um facto que eu desconhecia: no decorrer dessa tumultuosa reunião, foi exigido por várias vezes o fuzilamento dos militares implicados nesse suposto golpe. 

A exigência partiu dos oficiais, sargentos e praças do quartel atacado, reunidos em plenário. E o seu porta-voz foi o capitão Diniz de Almeida – que, numa voz um tanto gaguejante, lá transmitiu o recado à assembleia do MFA. Mas houve mais militares a fazer a exigência, tendo sido lido um comunicado onde os fuzilamentos eram formalmente pedidos. «Fuzilamentos imediatos», note-se, sem direito a julgamento.

Ora, aí houve vozes que corajosamente se levantaram. Se não fossem elas, talvez os fuzilamentos tivessem ido para a frente. E não será nada fácil falar contra a corrente numa assembleia dessas, com os ânimos exaltados, com militares a pedirem a morte de camaradas, com a adrenalina no máximo.

Um dos presentes nessa assembleia era o coronel Varela Gomes, implicado no golpe de Beja, em 1961. Foi ferido, esteve preso, mas estava ali presente, depois do 25 de Abril. Então, um outro oficial, dirigindo-se a ele, perguntou:

– Varela, estás vivo ou morto?

Não se percebeu logo a pergunta. Ele estava vivo, evidentemente. Levantou-se e falou. Mas o sentido de interpelação era outro: se a ditadura do Estado Novo não tinha morto um militar que participara no assalto a um quartel, como entender que os militares que tinham acabado com a ditadura fuzilassem os oficiais implicados num assalto idêntico? 

Dir-se-á que as situações eram diferentes – pois num caso tratava-se de um Estado organizado e noutro de um período revolucionário. É verdade. Mas é isso mesmo que mostra o horror das revoluções, onde são permitidas todas as arbitrariedades.

Felizmente, os fuzilamentos não avançaram e o 25 de Abril pôde continuar a ser uma ‘revolução sem sangue’. 

Há quem sustente que a violência é por vezes necessária. Que as revoluções são precisas. Que não há outra maneira de avançar. É um engano. Os povos não dão saltos na História. Se não tivesse havido a revolução soviética, é muito provável que a Rússia não fosse hoje muito diferente do que é. Putin não passa de um czar dos tempos modernos. E ter-se-iam poupado enormidades, sacrifícios terríveis, famílias desfeitas, milhões de mortos, violências sem fim. 

E se não tivesse havido nazismo, a Alemanha não seria muito diferente do que é. Um país industrial, muito desenvolvido, a fábrica da Europa. E não vale a pena dizer o que se teria poupado: basta recordar as câmaras de gás e os fornos crematórios.