Um bom sarilho…

O ‘desaire escrito nos astros’ do PSD em outubro não enfraquecerá apenas o PSD, mas a democracia

Pode um suposto líder da Oposição retirar-se de férias, em Agosto, com uma greve complexa em curso, extensiva a todo o país, e manter até ao limite um olímpico silêncio como se nada se passasse?

Pode, como se viu com Rui Rio, mas não deve, em especial se essa greve envolver camionistas, que mexem com a estrutura sensível da distribuição, e ocorrer a menos de dois meses das Legislativas, com a agravante de o PSD estar a descer perigosamente nas sondagens.

Pode um primeiro-ministro em exercício fazer uma declaração à saída do Palácio de Belém, após uma audiência com o Presidente da República, e ironizar com a ausência em férias do líder do PSD perante os jornalistas?

Pode, como se viu com António Costa, mas não deve, por parecer uma tentativa de achincalhamento de um adversário político, como se fosse um recado ou um ‘soundbyte’ de consumo fácil, quando há dois anos ele próprio fez pior, ao viajar de férias para uma ilha espanhola, enquanto o centro do país ardia e chorava as vítimas.

Se António Costa sobreviveu, politicamente, a essa fria indiferença pelo drama de populações martirizadas pelo fogo – e às sequelas do rocambolesco assalto a Tancos –, foi porque em ambos os casos beneficiou do apoio de Marcelo Rebelo de Sousa, que o ‘substituiu’ e lhe pôs ‘a mão por baixo’, evitando o trambolhão.

Mas, como se viu, Costa apaga os seus erros com ligeireza, e já nem se lembra que foi ele o protagonista dessa inconcebível vilegiatura no estrangeiro, à qual não lhe ocorreu renunciar.

Diga-se, entretanto, que essa espécie de ‘estado de levitação’, fora da realidade tangível, já tinha antecedentes, como se notou ao participar no programa da TVI, ‘herdeiro’ da Quadratura do Círculo, defendendo sem pestanejar que «nos dois anos que fui ministro do engenheiro José Sócrates nunca tive nenhum sinal que me levantasse a menor suspeita sobre o seu comportamento (…)». E, para que não sobrassem dúvidas, ainda acrescentou: «Tenho a certeza de que no PS as pessoas não conheciam os factos que têm vindo a público». Um segredo, portanto, bem guardado e desconhecido de todos os que conviveram de perto com Sócrates, e partilharam do seu circulo mais restrito, como aconteceu com ele ou com Pedro Silva Pereira.

Pode imaginar-se como terão ficado boquiabertos ao tomar conhecimento do despacho final da Operação Marquês, em Outubro de 2017, com mais de quatro mil páginas, nas quais Sócrates, só à sua conta, ‘amealha’ uma acusação com 31 crimes de corrupção, branqueamento de capitais, falsificação e fraude fiscal.

Quase dois anos depois, ainda o processo instrutório ‘vai a santos’, sem que se vislumbre o seu desfecho. O tempo da Justiça obedece a lógicas imperscrutáveis.

Regressemos, porém, a Rui Rio e à sua gestão do partido. Pode um líder do PSD designar dois jovens quase desconhecidos e sem currículo político para ‘cabeças de lista’, em Lisboa e no Porto, e reservar para si um segundo lugar, como candidato a deputado, na cidade a cujo Município presidiu durante mais de uma década?

Pode, como se viu, mas é um ‘tiro no pé’, mesmo a pretexto da renovação do pessoal político, simulando um desprendimento e uma modéstia que ninguém lhe reconhece.

Escreveu-se no jornal oficial do PSD que, «com estas escolhas, Rui Rio pretende demonstrar que está a trabalhar para o futuro (…)». É, obviamente, uma estultícia e uma explicação esfarrapada para algo bastante mais sério, que foi o deliberado afastamento de vozes incómodas.

De facto, há muito que se percebeu que Rio não tolera críticas, como o seu passado político exuberantemente demonstra.

Recém-eleito líder, e já Rio preferia os improvisados ‘acordos de regime’ com António Costa, adiando ostensivamente o encontro com a principal bancada parlamentar, formada pelos deputados do PSD do tempo de Passos Coelho.

Por isso, não admira a exclusão de boa parte dos ‘cabeças de lista’ do partido eleitos em 2015, bem como de vários nomes então em evidência, como o de Maria Luís Albuquerque.

O critério agora adoptado só pode ser entendido como um ‘ajuste de contas’, que lhe fica mal, com o objectivo adicional de dispor de uma bancada que lhe seja absolutamente fiel e obediente.

O desaire ‘escrito nos astros’ para o PSD em outubro, a confirmar-se, não enfraquecerá apenas o partido, mas a democracia portuguesa, exposta à estratégia da captura do Estado por uma maioria, repartida entre socialistas e parceiros da esquerda comunista.

É este cenário que, infelizmente, Marcelo Rebelo de Sousa terá dificuldade em contrariar, apesar da sua capacidade de antecipação dos acontecimentos. E se ficar refém dessa maioria – ‘condenado’ a ser apenas popular –, o país estará metido num bom sarilho…