Assim não, senhores utentes!

Os utentes têm de respeitar as decisões dos médicos e não se intrometerem no receituário e nos exames complementares

O meu artigo de hoje destina-se prioritariamente aos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS). E porquê? Porque eles são um dos pilares fundamentais onde assenta o serviço público de saúde, pelo que representam uma peça importante na reestruturação do SNS de que se está constantemente a falar.

É típico da nossa gente criticar, dizer mal por tudo e por nada, e o mais curioso é que as culpas são sempre dos outros, do sistema em vigor, do Estado, como se ninguém tivesse a mínima responsabilidade das falhas e dos erros que, infelizmente, vamos reconhecendo no dia-a-dia. Quando confrontadas com a realidade, as pessoas culpam impiedosamente os governantes, talvez por serem o rosto das instituições, aqueles que dão a cara pelo mau funcionamento dos serviços, que nunca lhes resolvem os problemas – esquecendo-se de que, apesar de tudo, eles estão a servir o país em missões porventura ingratas e tantas vezes mal compreendidas.

Mais uma vez, servindo-me da experiência de muitos anos de bata branca e também por ter passado pela gestão de unidades de saúde, posso testemunhar que nem tudo é culpa dos outros. Todos nós temos responsabilidades na matéria, e é preciso que cada um as assuma e cumpra (e bem) a sua missão.

Os utentes do SNS têm de perceber que são necessários para a renovação desse serviço, e que só com a colaboração de todos se pode fazer mais e melhor. Será imperioso criar nova legislação? Com certeza que sim, mas eu diria que isso só não chega se não se mudar a mentalidade.

Estamos a falar de vícios instalados de anos e anos de práticas erradas e de abusos que minaram a saúde durante décadas e vão demorar algum tempo a desaparecer. Vejamos, por exemplo, o consumo desmedido de consultas nem sempre justificadas, explicável apenas por esconder problemas de solidão ou do foro social; o não cumprimento das regras administrativas, visando trazer melhor organização aos serviços e que muitos procuram não respeitar; a tendência crescente para a realização de exames complementares a pedido dos utentes, como se os centros de saúde fossem supermercados, numa espécie de comédia, onde os médicos não passam de figurantes! Já nem falo da despesa pública agravada com estes excessos, mas é bom que se comece a pensar nas consequências desta prática continuada, sobretudo quando formos afetados por ela a nível financeiro. É preciso pôr travão a certos tipos de comportamentos e acabar com este regime onde todos têm direitos e ninguém tem deveres.

Apelo ao comportamento cívico dos doentes. Sigam os conselhos dos vossos médicos e não deem ouvidos a outro tipo de vozes que só vos irão conduzir à confusão. Respeitem as decisões dos profissionais e não caiam no ridículo de se intrometerem na esfera clínica, quer no tocante ao receituário, quer nos exames complementares. Cumpram as normas administrativas, colaborando assim com um sistema que só sobrevive se todos ‘remarmos para o mesmo lado’. Não se esqueçam de emitir a vossa opinião. A colaboração de cada pessoa é essencial e só com um trabalho em equipa se atingirão os melhores resultados. A experiência assim o diz.

Para melhor ilustrar o que vai acontecendo – e que queremos acabar de vez -, registo um exemplo que recentemente me chocou e de que irá falar-se pelas piores razões, pondo em evidência a mentalidade de certos utentes. Uma senhora de setenta e muitos anos veio à minha consulta fazendo-se acompanhar do filho. Após análise das suas queixas, a que se seguiu a observação, chegou a altura de a medicar. Eis se não quando o acompanhante, com o maior à-vontade e sem escrúpulos, virou-se para mim e, intrometendo-se no meu critério clínico, disse: «Doutor, faça favor de receitar à minha mãe isto e aquilo, pois é disso que ela precisa». Sem contar com tanto descaramento, mas conservando a calma, ainda consegui perguntar: «Afinal, quem é o médico?». «O senhor não quererá trocar de lugar comigo?».

Cenas lamentáveis como esta, que começam a ser frequentes na nossa vida clínica, têm pura e simplesmente que acabar. Nós, médicos, estamos aqui para servir; mas tudo tem limites. Assim não, senhores utentes!

* Médico