Incêndios da Amazónia. Como chegámos a este estado?

Estudo divulgado em maio já tinha alertado para a falta de preocupação com as zonas protegidas no Brasil. Bolsonaro fez com que o Ministério do Ambiente se tornasse algo “oco e sem conteúdo”, diz a Greenpeace.

Seria de esperar que, com tantas notícias sobre o assunto, fosse relativamente facil encontrar informação sobre a área ardida na Amazónia. Mas não é bem assim. Alguns jornais falam em 20 mil hectares, outros em um milhão. E os incêndios estão a deflagrar apenas no Brasil? Há muita informação espalhada pelas redes sociais, mas nem toda está correta.

A verdade é que ainda não é possível obter dados certos sobre a área ardida durante os incêndios mais recentes na Amazónia. O programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), organismo federal brasileiro responsável por estudos nas áreas de Ciência Espacial e da Atmosfera, só tem dados até ao mês de julho. A vaga de incêndios neste bioma – conjunto de ecossistemas interligados – começou em agosto. No entanto, é possível fazer um retrato do que tem sido 2019: desde janeiro, já arderam 18.629 quilómetros quadrados do bioma da Amazónia, que tem cerca de 5,5 milhões de quilómetros quadrados.

Durante o mesmo período, o bioma do Cerrado – que tem pouco mais de dois milhões de quilómetros quadrados – viu 27.149 quilómetros quadrados da sua área ardida. Então porquê tanta preocupação com a Amazónia e não tanta com os restantes ecossistemas? Além das questões ambientais e políticas já referidas, a respostas está no número de focos de incêndio: até 26 de agosto, foram registados, desde o início do ano, 82.285 focos no Brasil – destes, 51,9% localizavam-se na Amazónia, o que corresponder a 42.719 focos de incêndio.

E apesar de a maior parte dos fogos estarem a lavrar em território brasileiro, os países vizinhos também estão a ser afetados – não esquecer que 60% das florestas que compõem este ecossistema pertencem a Brasil, mas 13% localiza-se no Peru e outras partes menores estão espalhadas pela Colômbia, Venezuela, Equador, Bolívia, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Sobre os efeitos desta vaga de incêndios, é mais difícil recolher informação fidedigna, o que torna impossível dar um número concreto no que diz respeito à área ardida na Amazónia.

Sabe-se, no entanto, que a Bolívia tem tido sérias dificuldades em lidar com o crescente número de ocorrências. De acordo com o jornal El Deber, a Autoridade dos Bosques e da Terra revelou que, em cinco dias, a Bolívia perdeu mais floresta do que em todo o ano 2016. Os incêndios que lavram há vários dias na zona de Chiquitania, na fronteira com o Brasil, consumiram, em apenas cinco dias, 471 mil hectares. Em 2016, o total de área ardida no país tinha sido de 350 mil hectares. Este ano, a área afetada vai já nos 953 mil hectares, refere o mesmo jornal. No Paraguai, mais precisamente na zona do Pantanal (na fronteira com o Brasil e a Bolívia), já arderam 37 mil hectares.

Como chegámos a este estado? Primeiro que tudo, é preciso recordar um estudo publicado em maio deste ano na revista Science que alertava precisamente para as consequências da falta de proteção de determinados ecossisemas. Numa entrevista ao site Conservation International, os autores do estudo explicaram que certas zonas do planeta estão a enfrentar um processo de PADDD (Protected area downgrading, downsizing, and degazettement – Recategorização, redução e extinção de áreas protegidas, em português). Ou seja, zonas que antes eram protegidas por uma série de medidas estão agora a ser deixadas “ao deus dará”. “Descobrimos que 4% das áreas protegidas no Brasil foram afetadas por processos de PADDD nos últimos 46 anos. Apesar de tecnicamente ser um número inferior a outros países abrangidos pela floresta amazónica, este é um hotspot que deve ser estudado com atenção devido às políticas ambientais que têm sido implementadas”, explicou a autora do estudo.

É certo que estes eventos têm ocorrido ao longo das últimas décadas, mas as decisões de Bolsonaro enquanto Presidente do Brasil estão a deixar os ambientalistas ainda mais preocupados com o que pode vir a acontecer na Amazónia e nos restantes ecossistemas do país. Uma reportagem do jornal Folha de São Paulo mostra que o Ministério do Meio Ambiente facilitou os processos de desmatação, através, por exemplo, da anulação de multas e do enfraquecimento das garantias das áreas protegidas.

Os números falam por si: entre janeiro e agosto, a aplicação de multas ligadas ao meio ambiente caiu 29% e as verbas disponibilizadas para programas de fiscalização e combate a incêndios florestais perderam 38% e 24% do seu orçamento, respetivamente.

Outro ponto é a censura, perseguição e demissão de servidores (funcionários públicos). Estes funcionários estão proibidos pelo governo de dar entrevistas, mas os servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) usaram as redes sociais para divulgarem uma carta aberta na qual alertam para a queda de 24% no número de fiscais deste órgão entre 2018 e 2019. O documento fala ainda no “colapso da gestão ambiental federal, que estimula o cometimento de crimes ambientais dentro e fora da Amazônia”.

E desde cedo se percebeu que Bolsonaro iria assumir uma postura muito diferente dos restantes líderes mundiais no que diz respeito a questões ambientais: logo em janeiro, anunciou que iria acabar com a secretaria de mudanças climáticas, a Agência Nacional de Águas passou do Ministério do Meio Ambiente para o do Desenvolvimento Regional e o Serviço Florestal Brasileiro passou para a pasta da Agricultura. Na altura, a Greenpeace alertou para o facto de o Ministério do Ambiente estar a perder cada vez mais poder: “Bolsonaro está tornando o ministério algo oco, sem conteúdo. Ao invés de acatar numa canetada só, está acabando em várias canetadas para que não tenha essa repercussão negativa internacional, para que faça as coisas de modo escondido. Ele mudou o formato, mas não desistiu do objetivo”, disse ao Huffington Post Márcio Astrini, coordenador de políticas públicas daquela ONG. O mesmo site refere que Bolsonaro não acabou com o Ministério do Ambiente por pressão (ironia das ironias) do agronegócio – os produtores temiam que uma medida tão drástica pudesse ter um impacto internacional muito negativo e que este afetasse potenciais negócios.

Doações Não, não é verdade que Lionel Messi tenha contratado cinco aeronaves, com capacidade para 70 mil litros de água, para ajudar a combater os incêndios na Amazónia. Os representantes do jogador argentino já vieram desmentir esta informação, que foi difundida nas redes sociais. Mas há quem esteja mesmo a ajudar financeiramente a acabar com estes incêndios.

Leonardo DiCaprio foi o primeiro a reagir a esta crise ambiental. A organização fundada pelo ator, a Earth Alliance, vai doar cinco milhões de dólares (cerca de 4,5 milhões de euros) para ajudar a Amazónia. Também a Apple anunciou que ia ajudar na recuperação da floresta. “É horrível assistir a estes fogos e à destruição da Amazónia, um dos ecosistemas mais importantes do mundo. A Apple irá ajudar a preservar a biodiversidade ali existente e a reflorestar aquela zona”, escreveu Tim Cook, CEO da empresa.

Por outro lado, houve quem cancelasse as doações: a Alemanha e a Noruega decidiram cancelar os contributos financeiros que costumam fazer a favor do Fundo Amazónia por desconfiarem das intenções de Bolsonaro.