Pelé. Uma espera inquietante

Estão quase a cumprir-se 50 anos sobre o golo mil de Pelé. Mas a história dos meses que o antecederam obrigaram-no até a ir à baliza.

No início de Setembro de 1969, Pelé andava inquieto e essa inquietação propagava-se por entre os seus companheiros de equipa do_Santos. Tudo por causa das estatísticas. Não havia dia em que qualquer jornal brasileiro não trouxesse a público a contabilidade dos seus golos. E nem todas batiam certo. Era isso que o irritava.

Edson Arantes do Nascimento não continha a ansiedade por marcar o seu golo mil. No dia 3 marcara num jogo de brincadeira entre a selecção do_Brasil e uma selecão de Minas Gerais. Havia quem dissesse que era o golo 983, todas as competições e particulares incluídos, havia quem dissesse que era o golo 982 e quem garantisse que era apenas o golo 981.

Nas redacções, os jornalistas atarefavam-se em contabilidade. Os registos eram consultados ao milímetro, os arquivos eram virados do avesso, havia até quem fizesse entrevistas a Zaluar, o guarda-redes do Corinthians de Santo André que, na tarde de 7 de Setembro de 1956 sofrera o primeiro golo marcado por Pelé com a camisola do Santos, tinha o garoto apenas 15 anos. Zaluar tinha orgulho nesse golo sofrido. Chegou a mandar imprimir cartões de visita dizendo: «Zaluar, o primeiro goleiro a sofrer um golo de Pelé». Não havia ninguém que pudesse igualar tal feito, como também o guarda-redes que sofresse o golo mil estava destinado a ter o nome na história do futebol.

Até final de Setembro, Pelé chegou ao golo 991. Só faltavam nove. Ou seria 990, faltando, por isso, dez. Ou? Ou? Ou?

Pelé não queria sequer ouvir falr em ous.  Entrava em campo furibundo como um touro na arena, fosse contra adversário fosse. Em Inglaterra, na vitória do Santos frente ao Stoke, fez gato sapato de toda a defesa inglesa, mas só marcou um golo. Dois dias depois, encerrando uma digressão pela Europa, caiu esfaimado sobre a rectaguarda de uma selecção de jogadores do Génova e da Sampdória e somou mais dois à conta pessoal. O_Santos venceu essa partida por 7-1 e o público genovês ficou abismado com a categoria de gente como Carlos Alberto,_Clodoaldo, Rildo, Joel e, acima de todos, de Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé, tal como escreveu certa vez o mestre da crónica Nelson Rodrigues.

 

A corrida!

Pelé corria freneticamente atrás do seu golo mil quando o Santos regressou ao Brasil para dar início ao Campeonato Paulista. Mas, por mais golos que marcasse, nunca fugiria das diversas estatísticas que se foram construindo em seu redor. Em Maio de 1995, por exemplo, o jornal Folha de São Paulo encontrou um golo marcado por Edson pela selecção militar contra o Paraguai para o Campeonato Sul-americano, o que faria que o golo mil tivesse surgido cinco dias antes do tão celebrado dia 19 de Novembro de 1969. Entrava-se na saga dos golos perdidos. Um deles seria na Costa do Marfim, numa excursão levada a cabo em 1966. Era um golo estranho porque contra o Santos, já que Pelé jogou o segundo tempo pela selecção costa marfinense. Por outro lado, os brasileiros contam 95 golos com a camisola canarinha e a FIFA só reconhece 77 pois não inclui os golos apontados contra selecções regionais ou em jogos entre selecções e clubes.

A discussão seria fastidiosa se, pelo caminho, não tropeçássemos com episódios caricatos. É que na sua demanda dos mil golos, Pelé jogou por mais de uma vez como guarda-redes, ou seja, o mais longe possível da baliza contrária. Dir-me-ão que poderia ter enchido, facilmente, o saco com auto-golos, mas não era coisa que lhe ficasse bem e esbarraria com todo o respeito que o povão tinha por ele.

Nesse amigável contra a Costa do Marfim, por exemplo, actuou toda a primeira parte como goleiro do Santos. Mas a cena mais fantasmagórica teria lugar em_João Pessoa, no dia 14 de Novembro de 1969. O jogo era, igualmente amigável, contra o Botafogo da Paraíba. Num instante, o Santos fez 3-0, com um dos golos a ser marcado por Pelé. Era o golo nº 999. Os espectadores estavam delirantes e não passava despercebido nem ao maior dos amblíopes que os botafoguenses facilitavam como podiam para terem o privilégio de sofrer o milésimo golo de Edson.

Aí, Pelé disse: «Isso é que não Serapião!». Jairzão, o guarda-redes do Santos fingiu uma lesão e o crioulo mágico esticou o braço requisitando o posto de goleiro já que não havia direito a substituições. O público de João Pessoa não gostou. E sublinhou o facto com assobios. Dois dias depois, contra o Bahia, numa jogada formidanda, o 10 do Santos fintou cinco adversários e tocou a bola para a baliza vazia, saindo de braços abertos para comemorar o tal milésimo, finalmente. Se tivesse olhado para trás, perceberia que um defesa mais atento correra para a linha de golo e impedira a bola de entrar. Frustrante.

O público de Vila Belmiro, que se achava no direito de assistir ao acontecimento em sua casa, tratou de chamar nomes ao desgraçado do defesa do Bahia, não lhe poupando nem mãe nem pai, nem qualquer parente acima do quinto grau. Por muito que se esforçasse, Pelé não quebrou o 1-1 e manteve-se no 999.

É então que o calendário faz correr nas folhinhas o dia 19 de Novembro. Pouco mais de 64 mil pessoas no Maracanã para o_Vasco da Gama-Santos a contar para o Campeonato Brasileiro. parecia haver mais gente, armada de máquinas fotográficas, atrás da baliza do argentino Andrada, do Vasco, do que nas bancadas.

 Aos 10 minutos da segunda parte, o_Santos perdia por 0-1. Depois Renê empatou. Pelé marrava de frente contra toda a defesa vascaína quando, de súbito, foi tocado. Minuto 78. Uma balbúrdia generalizada. Reclamações de um lado, festejos do outro. Minutos perdidos. O árbitro manoel Amaro Lima não mudou de ideias. Andrada não queria ficar conhecido como Goleiro Mil. Enfrentou o remate de Pelé, com o pé direito, esticando-se como se fosse de borracha. De nada lhe serviu. Edson correu para dentro da baliza para beijar a bola. Fotógrafos e repórteres entraram na baliza com ele. Geraldo Blota, da Globo, enfiou-lhe um microfone ma boca: «Pensem nas criancinhas», filosofou Pelé. Já Drummond de Andrade, o poeta que torcia pelo Vasco, foi mais profundo: «O difícil não é marcar mil golos como Pelé. Difícil é marcar um golo como Pelé».