‘Se há pessoa que tem algum jeito para arrumar livros…’

Acusei o toque e respondi com alguma sobranceria: ‘Já tinhas obrigação de saber que se há pessoa que tem algum jeito para arrumar livros sou eu’.

Quando entrou naquele a que chamamos o ‘quarto dos brinquedos’, a minha mulher deve ter ficado aterrada. Havia torres de livros no chão, em cima da cama, livros a deslizar por cima de dossiês em cima da secretária – um pandemónio completo. Mas, vendo o meu empenho, ela teve a delicadeza de não fazer comentários.

Antes de mais, deixem-me explicar o que é o quarto dos brinquedos: uma divisão com uma cama para as visitas, uma secretária onde seria suposto os nossos filhos estudarem mas que está sempre atulhada de bugigangas, uma cómoda amarela – com legos numa gaveta, carrinhos noutra, bonecos noutra, plasticinas noutra, pistolas noutra e por aí adiante – e uma estante do Ikea com livros infantis. Além desses móveis convencionais, há caixas, caixinhas e caixotes encostados às paredes, com brinquedos de todos os géneros e nos mais variados estados de degradação.

Há uns meses tomei a sábia decisão de não voltar a arrumar esse quarto enquanto pelo menos metade dos brinquedos não fosse fora – e tem sido um descanso. Mas desta vez abri uma exceção. Para os livros.

Para começar, a própria estante estava a desconjuntar-se, o que envolveu um mínimo de bricolage e retirar uma boa parte dos livros. Foi aí que a minha mulher apareceu, no auge da desarrumação. Depois, enquanto repunha os livros, uma das prateleiras voltou a desabar, obrigando-me a retirar tudo de novo e a consolidar a estrutura.

Arrumar livros, encaixá-los no sítio certo, é, devo dizer, um dos meus passatempos favoritos. Neste caso, porém, além de se tratar de literatura infantil, o mau estado de alguns livros deixou-me mortificado. E há aqueles grandes formatos, que são muito engraçados, mas não cabem em lado nenhum. Estava, por isso, precisamente a pô-los deitados quando a minha mulher voltou a entrar. ‘Porque é que não os pões direitos?’, perguntou. Acusei o toque e respondi com alguma sobranceria: ‘Já tinhas obrigação de saber que se há pessoa que tem algum jeito para arrumar livros sou eu’.

Escusado será dizer que o comentário me espicaçou. Juntei livros com alturas de lombadas semelhantes para dar alguma uniformidade ao conjunto, ordenei coleções, reagrupei os volumes para preencher espaços vazios, mas sem sobrecarregar as prateleiras. E ainda surripiei um livro deles para a minha coleção…

Aos poucos e poucos, tirando daqui e pondo acolá, fui conseguindo que o conjunto ficasse mais ou menos harmonioso. E pude finalmente começar a apreciar o que havia ali: entre outros, os hilariantes Diários de um Banana, os álbuns de Calvin & Hobbes, as adaptações dos clássicos por João de Barros e O Grufalão, um dos meus livros infantis favoritos.

No final, dando-me conta de que ainda subsistiam algumas cadernetas em cima da cama, peguei nelas e pousei-as sobre os grandes formatos com o maior dos cuidados, quase sem respirar, como se estivesse a jogar mikado. Felizmente, a torre não se desmoronou. Estava na hora de ir chamar a minha mulher. Depois do pandemónio em que ela tinha encontrado o quarto, de certeza que a estante ia parecer-lhe ainda mais bem arrumada.