«Se tens dentes não fiques à espera das nozes que Deus não te deu!»

Deus dá-nos os dentes, dá-nos a nogueira, e dá-nos a coragem, o alento, a força de vontade para viver, mas as nozes, essas, somos nós que as conquistamos ou não.

Em Carnide, Lisboa, encontrei mais uma frase do Velho do Restelo (e o Pedro também a encontrou e enviou-me fotografia), que diz: «Se tens dentes não fiques à espera das nozes que Deus não te deu!».

Partindo da expressão «Dá Deus nozes a quem não tem dentes», o autor vai mais longe e apela ao espírito de iniciativa que todos, afinal, temos. Incita, pois, aqueles que têm dentes – no fundo, todos nós – a não ficarem à espera de algo que, segundo o autor, Deus não nos dá, tendo de ser nós próprios a conquistar aquilo que queremos.

Efetivamente, como diz Torga, «Somos nós que fazemos o destino». E fazemo-lo quando não nos deixamos ficar de braços cruzados, quando nos lançamos na vida como quem parte para uma aventura, em busca de um ideal que, para nós, desenhámos, rumo a uma vida que queremos viver, determinados a conquistar os nossos sonhos. É por esse motivo que o Velho do Restelo diz que Deus não nos dá as nozes. E assim é, na realidade. Deus dá-nos os dentes, dá-nos a nogueira, e dá-nos a coragem, o alento, a força de vontade para viver, mas as nozes, essas, somos nós que as conquistamos ou não.

Ficar sentados «em cima da penedia», a cantar «loas à fatalidade», nas palavras de Miguel Torga, à espera das melhores condições para navegar é, muitas vezes, apenas uma forma de procrastinação, de esperar pacientemente, sem nunca ter coragem de avançar. É, assim, perdermos a oportunidade de fazer algo por nós próprios e de construir o nosso destino. Aguardar pelas tais «nozes» que não nos serão dadas é aguardar por algo que talvez nunca chegue. Porque as condições nunca serão as ideais. A vida não é como nós a desejamos, é aquilo que acontece e temos de ser nós a moldar as condições e a construir o destino.

Tolentino Mendonça elabora um raciocínio, a propósito do que nos é dado e não é dado, que merece atenção: «O mais comum é agradecer o que nos foi dado. E não nos faltam motivos de gratidão. Há, é claro, imensas coisas que dependem do nosso esforço e engenho, coisas que fomos capazes de conquistar ao longo do tempo, contrariando mesmo o que seria previsível, ou que nos surgiram ao fim de um laborioso e solitário processo. (…) Se tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros (e é pena que esse exercício não nos seja mais habitual), perceberíamos o que a poetisa Adília Lopes repete como sendo a sua verdade: “sou uma obra dos outros”. Todos somos. (…) Hoje, porém, dei comigo a pensar também na importância do que não nos foi dado. (…) Tornar-se adulto por dentro não é propriamente um parto imediato ou indolor. No entanto, enquanto não agradecermos a Deus, à vida ou aos outros o que não nos deram, parece que a nossa (…) [vida] permanece incompleta. Podemos facilmente continuar pela vida dentro a nutrir o ressentimento pelo que não nos foi dado, a compararmo-nos e a considerarmo-nos injustiçados, a prantear a dureza daquilo que em cada estação não corresponde ao que idealizamos. Ou podemos olhar o que não nos foi dado como a oportunidade, ainda que misteriosa, ainda que ao inverso, para entabular um caminho de aprofundamento… (…) desde o interior de um campo de concentração, a escritora Etty Hillesum conseguiu, por exemplo, protagonizar uma das mais admiráveis aventuras espirituais da contemporaneidade. No seu diário deixou escrito: “A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. (..) Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga. E que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais”.»

«Chegar à Índia ou não», como diz Miguel Torga, é «um íntimo desígnio da vontade». Façamos, pois, por aproveitar cada minuto. De preferência, sorrindo…

Maria Eugénia Leitão