A burocracia mata

O mau funcionamento das instituições fomenta o jeitinho, o favor, a cunha…

Estarão os atrasos na decisão dos processos de legalização de imigrantes a favorecer situações de sequestro, exploração e, até, de escravização?

Imagine o leitor um casal de estrangeiros, mas poderiam ser portugueses, que têm ao seu serviço uma jovem empregada doméstica em situação ilegal, com tudo o que isso acarreta de trabalho mal pago, sem horário, dias de descanso e proteção na doença. Agora imagine que esses patrões exploram ‘salas de massagem’, num outro local da cidade, e um dia incumbem a empregada de ir fazer a limpeza de uma das ‘salas’, que ela descobre ser uma palavra que deve levar todas as aspas, tal a natureza do lixo. Continuando a imaginar, na cena seguinte a jovem empregada regressa a casa e informa os patrões de que recusa voltar a fazer aquele trabalho, atitude que desencadeia a reação imediata, típica de quem explora: ameaça de denúncia às autoridades, de que está em situação ilegal – a trabalhar com visto turístico. Finalmente, deixe o leitor de imaginar que este relato é ficção, pois acontece mesmo… na nossa Lisboa.

É por demais sabido que é o mau funcionamento das instituições, com atrasos crónicos na emissão de vistos e licenças, que fomenta o jeitinho, o favor, a cunha, tudo formas de corrupção para se conseguir, às ocultas, o que devia estar disponível às claras e em tempo útil. Não é segredo para ninguém que onde há eficiência nos processos e transparência nas práticas as coisas acontecem no tempo certo e não deixam margem para o surgimento dos habilidosos que ‘criam dificuldades para venderem facilidades’. E isso, tanto no público como no privado.

Vivendo fora do seu meio, os imigrantes são, por natureza, seres desprotegidos, desprovidos dos conhecimentos e das referências que lhes permitam viver com a autonomia de cidadãos de corpo inteiro. E nem é preciso acrescentar as discriminações resultantes das diferenças, sejam elas de língua, de cor da pele, de religião ou de cultura, que tudo agravam. Tanto bastaria para que devessem contar com apoios que os poupassem a barreiras e obstáculos, geradores de uma de duas coisas: sujeição a abusos ou marginalidade. O que se defende não é a política de porta aberta, tão só a aplicação das leis de acolhimento no espaço da União Europeia.

Chegam-nos, constantemente, notícias de pessoas escravizadas – nas minas, na agricultura, na construção civil, na prostituição, ou em casas de ‘famílias da nossa melhor sociedade’ −, sendo de temer que se trate de uma pequeníssima amostra de um cancro que corrói as sociedades, onde a legislação para a proteção dos direitos, liberdades e garantias até pode ser ótima, mas a fiscalização é péssima, ou inexistente, e a tolerância para com práticas aviltantes tende a ultrapassar os limites aceitáveis.

Na memória coletiva ainda está a revolta das mães de Bragança. A motivação era afastar os homens do pecado, mas a verdade é que foi o alarido público que pôs fim à complacência das autoridades… Resta saber se paga em dinheiro, ou em espécie.