Os dois Freitas

As eleições presidenciais de 1986, em que perdeu por uma unha negra contra Mário Soares, foram o ponto de viragem na sua vida política

Conheci Freitas do Amaral em 1981, em circunstâncias pitorescas. O diretor do Expresso na altura, Augusto de Carvalho, convidou-me para um almoço no Pabe, em que o convidado ‘especial’ era Freitas do Amaral. Eu trabalhava na época como arquiteto, e estava vestido de modo muito informal: camisa de linho sem colarinho, jeans azuis, sandálias indianas de enfiar o dedo. 

Quando cheguei ao Pabe, já estavam todos à mesa. Freitas sentava-se à cabeceira – e, ao ver-me chegar, olhou-me com uma estranheza levemente irónica: só me conhecia de nome e fazia certamente de mim uma ideia mais circunspecta. 

Ele vestia como sempre com grande formalidade – fato completo Príncipe de Gales cinzento, camisa e gravata, sapatos de atacadores, modelo inglês – e eu, ao vê-lo, senti brutalmente o contraste.

Nunca mais esqueci este episódio, pois jurei que não voltaria a ser apanhado em circunstâncias semelhantes. Na dúvida, passei a vestir sempre casaco e gravata. 

Asegunda vez que estive com ele foi numa entrevista em 1982, integrada num conjunto de quatro entrevistas que fiz aos líderes dos principais partidos: além dele, Francisco Pinto Balsemão, Mário Soares e Álvaro Cunhal. E, das quatro entrevistas, foi a que gostei mais de fazer, pela frontalidade das respostas. Apreciei a sua atitude.

Essa primeira boa impressão manteve-se. Ele entretanto saiu do CDS em 1982 e regressou em 1988 – sendo candidato numas eleições legislativas que comentei na RTP. E, aí adiantei que ele já não estava convicto do que dizia. Falava, mas não sentia as palavras. Representava um papel que já não era o seu. Freitas do Amaral indignou-se – e escreveu-me uma carta a cortar relações. Eu respondi-lhe dizendo que ele podia cortar relações comigo mas eu não cortava relações com ele, pois não tinha razões para isso.

Não falámos durante algum tempo. Uns três ou quatro anos. Até que Marcelo Rebelo de Sousa, sabendo da ‘zanga’, ofereceu-se como intermediário para a reconciliação. Combinámos um almoço no T-Club, no Espelho d’ Água, em Belém. Mas à última hora Marcelo ligou a dizer que não podia ir; e assim Freitas e eu ficámos frente a frente – e tivemos de reatar relações sozinhos, sem o intermediário! Foi uma situação insólita mas ao mesmo tempo divertida.
Mas, nessa altura, Freitas já não era a mesma pessoa. Aquilo que eu tinha dito na RTP era inteiramente verdade. As eleições presidenciais de 1986, em que perdeu por 138 mil votos contra Mário Soares, depois de uma grande campanha em que surgiu com um sobretudo verde que fez história, foram o ponto de viragem na sua vida.
Primeiro, porque foi uma derrota duríssima: depois de vencer folgadamente a 1ª volta, perdeu a 2ª por uma unha negra.

Depois, quando se tratou de liquidar as dívidas da campanha, o PSD demarcou-se. E Freitas ficou com dívidas de centenas de milhares de euros às costas. 

Ora, perder e ainda por cima ficar com dívidas para toda a vida não é brincadeira nenhuma. 

Essas duas razões juntas – a derrota e as dívidas – produziram uma viragem na vida política de Freitas do Amaral. As relações com Cavaco Silva (e, portanto, com o PSD) ficaram estragadas. Freitas aproximou-se da esquerda e começou a admitir entendimentos com o PS – coisa que acontecera em 76, mas fora uma exceção. 

Mais: à medida que se afastava de Cavaco, Freitas do Amaral aproximava- -se de Mário Soares,  – ou seja, preferia o político que o derrotara nas presidenciais ao político que o apoiara. A vida tem destas coisas. Em 2005 aceitará fazer parte de um Governo do PS, de Sócrates, embora depois o tenha renegado. Mas em 2015 apoiou Costa e depois deu a bênção à ‘geringonça’. Quem diria! Freitas do Amaral a celebrar um Governo apoiado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda!

Com esta viragem de 180 graus (recorde-se que Freitas do Amaral entrou na política antes do 25 de Abril como discípulo de Marcello Caetano) perdeu os amigos da direita e não ganhou amigos à esquerda. 

Por isso, acho que teve um final de vida amargurado. Vi-o pouco nos últimos anos. Almoçámos uma vez quando ele era ministro dos Negócios Estrangeiros, encontrámo-nos secretamente no Grémio Literário para ele me passar uma informação sobre Sócrates, que aliás nunca foi publicada. Depois disso, só um ou dois contactos telefónicos.