Encantou-se o Príncipe Negro

Às vezes corria pela berma do campo como um Mercúrio de asas nos calcanhares, bola na frente, drible largos; outras era um Bóreas, deus do vento, soprando primeiro em rajadas e terminando, de súbito, numa brisa quase estática como no momento em que deixava em franja os nervos dos guarda-redes já carregados de angústia antes…

Dizem por aí que o Rui morreu, mas pelo menos eu e ele sabemos que não é verdade. E Guimarães Rosa também: "As pessoas não morrem… ficam encantadas. A gente morre é para provar que viveu".

O Rui não precisava de provar coisa alguma. Logo ele, o Príncipe Negro, cavalheiro dos cavalheiros, sorriso sempre tímido, escondido, quase etéreo. Morrer como, Rui? Foste desaparecendo, a pouco e pouco. Desaparecendo dos campos, desaparecendo do convívio das pessoas, cada vez mais fechado na tua pintura, na tua solidão, no teu silêncio teimoso. Desvanecendo-se como um espírito, ele que jogava como um espírito, desconcertante, estando e não estando, às vezes quieto, alheado, de repente concreto, quase violento, embora de uma violência elegante, elegância de príncipe, elegância inimitável.

Rui Manuel Trindade Jordão. Se quiser recordar a última vez que estive com ele, não consigo. Acho que ninguém consegue. Parecia fictício. Como retirá-lo daquela redoma onde se fechou, nós que o vimos fazer coisas impossíveis? Certa tarde estava em Alvalade, jogavam Sporting e FC Porto, e ele tocou uma bola com o calcanhar de fora da grande área, como se fosse um golpe de suprema magia, inacessível para os que se limitaram a observar a elipse encantada do golo. Foi realidade ou fantasia? O próprio Jordão foi realidade ou fantasia?

Nasceu no dia 9 de agosto de 1952, em Benguela, praticava atletismo, veio para os juniores do Benfica, mas já era adulto naquela seriedade esfíngica misturada com timidez. Jimmy Hagan, o inglês sisudo que não gostava de falar, deve ter gostado daquele jeito do Rui de falar o menos possível, logo ele que tinha milhares de histórias para contar – eu tive o privilégio de ouvir muitas – e tratou de recuar o Eusébio no campo e formar uma linha avançada que tinha além do Jordão, o Artur Jorge, o Nené e o Vítor Baptista, ainda com o Simões. Varreram o futebol com golos. Jordão, de encarnado, fez 81 em 127 jogos.

 

Às vezes era ponta-de-lança, dono da grande área sem se plantar nela como uma árvore, como contra a França, em Marselha, fazendo golos dos bailados do Chalana. Às vezes corria pela berma do campo como um Mercúrio de asas nos calcanhares, bola na frente, drible largos; outras era um Bóreas, deus do vento, soprando primeiro em rajadas e terminando, de súbito, numa brisa quase estática como no momento em que deixava em franja os nervos dos guarda-redes já carregados de angústia antes do penálti.

Uma noite desfez o Feyenoord, na Luz, para a Taça dos Campeões. O seu nome foi desfraldado nas manchetes. Cinco anos depois de ter chegado ao Benfica partiu para Saragoça: 9 mil contos. O Príncipe Negro não gostou de César Augusta, não se adaptou a Aragão e ao futebol violento que era o de Espanha na altura. Regressou a Lisboa, desta vez para o Sporting, o Benfica não precisava dele, disseram-lhe. Provou o contrário. Marcou 184 golos com a camisola do leão sobre o coração, fez uma experiência curta nos Estados Unidos, quando a moda americana entrou em Portugal, uns meses de 1979 no Jackson Tea Men, sem história, o homem fino, leve, que bailava sobre a relva, foi caçado a patadas como uma ratazana, por duas vezes lhe partiram a perna, e ele sem raivas, sem ódios, sempre elevado, sempre principesco, voltava para fazer mais golos como outro fundamental que vi, num fim de tarde no Estádio da Luz, de penálti, frente ao russo Dassaev, da União Soviética, apurando Portugal para a fase final do Campeonato da Europa de 1984 onde seria uma espécie de anjo sem esforço realizando a sua dança estranha que talvez tivesse ainda algum um toque da musa espontânea da Baía Farta ou do rio da Catumbela.

Em Alvalade, houve o Manoel, Manuel Fernandes e Jordão. E depois, o Oliveira, Manuel Fernandes e Jordão. Era um tempo em que o futebol não se reduzia à estatística, a maldita da estatística que decide, por vontade de um jornalismo sem coração, a verdade dos melhores. Os golos de Jordão, desde os mais violentos, chutados com a potência bruta do seu pé esquerdo, aos mais deslumbrantes, como aquele em Southampton, em voo, de cabeça, de costas para a baliza, eram todos suaves milagres inadmissíveis de somar, como não se somam madonas de Boticelli.

 

Desvaneceu-se no Sporting, ainda foi príncipe em Setúbal, no Vitória, até se desvanecer dos relvados em 1989. Não ia aos estádios. Tinha uma vida para além da vida-vidinha. Tinha uma arte a precisar de espaço, de tintas e de telas, teve sempre uma arte, as formas inventadas pela musa dos sentidos, qualquer coisa o perseguia e o desinquietava, Jordão o plácido, Rui Manuel Trindade Jordão encantado no dia 18 de outubro de 2019 no Hospital de Cascais, traído pelo coração, e sabia tão bem como não se pode confiar no coração.

Está lá na planície grandiosa onde desfilam os Divinos Negros. O Príncipe entrou definitivamente pela porta da noite. Não disse adeus. Discreto, como se não desse sequer importância a si mesmo.