Prisioneiros da geografia

Não faltam exemplos (como é o caso da planície ucraniana na fronteira com a Rússia) de como a geografia continua a ter uma influência muito relevante na política supra estadual e estadual.

«A China é uma civilização a fazer de conta que é uma nação».
Lucian Pye

Tim Marshall, jornalista e especialista em relações internacionais, publicou um livro (Prisioners of Geography, by Elliot and Thompson Limited 2016) a que a editora Desassossego, em versão portuguesa, deu em 2017 o título de Prisioneiros da Geografia – dez mapas que lhe revelam tudo o que precisa de saber sobre política internacional. 
É um livro que vem reforçar a importância da geografia e que, segundo o Financial Times, põe a geografia no centro da política internacional. «Mesmo no tempo dos ataques cibernéticos, na era dos drones, este livro fundamenta a relevância que as planícies continuam a ter». 

O autor deste livro é um jornalista com quase três décadas de trabalho em mais de quarenta países, sobretudo em teatros de guerra e em conflitos na Europa, Médio Oriente, Ásia e África. A Síria, o Líbano, o Iraque, Israel, o Afeganistão, o Kosovo, a Macedónia, a Bósnia, a Croácia são alguns dos países onde cobriu conflitos armados. Tendo passado pela BBC e sido editor de diplomacia e relações internacionais na Sky News, é uma das maiores autoridades europeias e mundiais em relações internacionais e em política internacional. 

Com muita lucidez e recorrendo a uma fundamentação muito prática e atual, Tim Marshall destaca as limitações geográficas com que vários estadistas e políticos mundiais se confrontam, e que condicionam as opções e decisões que têm de tomar. 

A geografia tem estado presente nas guerras do Afeganistão, da Coreia, do Vietname, do Médio Oriente, da ex-Jugoslávia, na invasão da Crimeia pela Rússia. Montanhas, mares, rios, água, clima, etc., tudo concorre para que a geografia seja considerada como uma das variáveis mais relevantes da política internacional à escala mundial e continental.

A geografia é, foi e será sempre uma variável indispensável para a história da humanidade. Em África, no Ártico, na América Latina, na Península Coreana, na China, na Europa, nos EUA, no Japão, na Índia, no Médio Oriente ou no Paquistão.

A geografia, os recursos naturais, a história e outras variáveis continuam na era da internet, da robótica e dos drones a ser fundamentais para milhares de decisões que têm de ser tomadas ao nível supra estadual, estadual e não estadual.
Tim Marshall, com um misto de ironia e também de clareza, ao referir-se ao Presidente russo Vladimir Putin, religioso e apoiante da Igreja Ortodoxa, deixa a pergunta (e talvez uma meia provocação): se Putin, no meio das suas orações, não terá já perguntado a Deus «por que não puseste montanhas na Ucrânia?». 

Se assim fosse, as tentações de usar a planície do norte europeu, ao longo da história, para atacar a Rússia, não teriam sido tão grandes. Daí a grande preocupação russa (e ex-soviética), quase obsessão, de ter um grande domínio sobre as chamadas planícies a Oeste. Tem sido assim ao longo da História. Exemplos não faltam. De nações e países grandes e pequenos. A geografia sempre condicionou (e quase que aprisionou) muitos líderes.

Este livro deveria ser de leitura obrigatória. Sobretudo para decisores públicos, empresariais, etc. E em Portugal ainda mais. Porque a cultura política vigente (com poucas exceções) é de desvalorizar a política internacional. Ainda recentemente, nas últimas eleições legislativas, pouco se discutiram as matérias da política internacional na relação direta com a política caseira. Muitos candidatos falaram e propuseram tudo e o seu contrário, como se o nosso país não vivesse num tempo de convivência supra nacional, pudendo dar-se ao luxo de vir a decidir sozinho o seu futuro. Tipo ‘país concha’, com ganhos ilusórios de voltar a ter fronteiras…

Muita gente da classe política ainda não assumiu, por exemplo, que a política europeia já é mais política doméstica do que política internacional. A obsessão pela tecnologia muitas vezes faz-nos esquecer que a geografia e a memória dos povos e das nações valem mais do que mil tratados.

O poder da geografia continua a ser significativo na política internacional – e ainda bem que assim é.

olharaocentro@sol.pt