As ‘raças’ e o racismo na visão inadvertida de José António Saraiva. Uma simplificação inocente de efeitos perversos*.

Do mesmo modo, nem todos os judeus são músicos e cientistas, nem todos os filipinos são cantores, como poderia parecer pelo facto de serem filipinas quase todas as excelentes cantoras que animavam as (minhas) noites de Macau. E nem todos os negros são bons, nem todos os ‘brancos’ maus

Se disséssemos a um camponês do século XV ser a Terra que anda à volta do Sol e não o Sol à volta da Terra, ele diria que éramos cegos ou estúpidos!

As palavras usadas com imprecisão e os temas tratados com um conhecimento insuficiente da matéria alimentam erros gritantes e podem induzir a atitudes perversas.

A ignorância pode ser comparada a uma miopia, e o conhecimento a umas lentes bem graduadas. Quando o míope olha o mundo, vê-o com os olhos que tem, mas não como na realidade se apresenta e deve ser visto.

Com os óculos do conhecimento, também as coisas se revelam ao menos conhecedor num outro nível de realidade e de verdade.

Vêm estas considerações a propósito da crónica de José António Saraiva – de quem aprecio muito do que escreve, sempre indutor de reflexão – publicada no SOL de 4/10, em que discorre sobre ‘raças’, as características psicológicas e funcionais que o Autor a elas associa, e racismo.

Na meritória preocupação de tudo tornar claro e simples e ir ao encontro do olhar mais básico, JAS parece ter-se esquecido agora que as coisas nem sempre são como parecem ser ao olhar menos informado ou ingénuo.

Escreve: «Também se diz que as `raças` [teve a prudência das aspas] são todas iguais , que não há diferenças, e quem se atreve a dizer o contrário é considerado estúpido».

E com estas considerações eis-nos na confusão:

1. Na verdade, a ciência ou a simples observação informada não dizem que os grupos humanos (‘raças’ para JAS) são todos iguais. O que dizem é que não há ‘raças’ no sentido ideológico que foi sendo atribuído à palavra. [‘Quem se apossa das palavras, apossa-se das mentes’ – é isto o ‘politicamente correto’  ]. E quem ‘se atreve a dizer o contrário’, não é ‘estúpido’, é simplesmente mal informado. Como nesta matéria parece revelar-se o meu admirado Amigo JAS.

2. Se JAS quisesse dizer que a generalidade dos grupos humanos apresenta características físicas próprias dominantes, sim, isso é evidente. Mas poderia ir mais longe e melhor: todos os seres humanos são diferentes. Mesmo os gémeos perfeitos. É isso mesmo que o tal ‘fulano que olha para a esquerda, para a direita, para a frente e para trás no café’ pode observar e descobrir, se estiver alertado para isso. Uma maravilha da natureza, esse incontrolável ‘jogo dos possíveis’, diversidade individual que garante a possibilidade de sobrevivência da espécie.

De facto, aquilo que JAS diz ser ‘o observável’ não é o que parece ser – e é muito mais do que parece, se visto com os óculos do conhecimento. E sem preconceito. Isso mesmo me exibiu um domingo na Feira do Livro o seu tio José Hermano Saraiva, chamando a minha atenção para o mosaico «belíssimo» de tipos genéticos humanos que passavam (e paravam!) no stand da Gradiva.

Mas essas diferenças não têm o significado que o meu Amigo JAS surpreendentemente lhe atribui.

3. A associação, a implicância que para JAS existiria entre características que julga ver nos vários grupos humanos (‘raças’ para ele) e os respetivos traços físicos (dominantes, acrescento eu), é um erro grosseiro. Porque a única coisa que pessoas da mesma cor de pele (no fundo, sempre os Negros…) compartilham é a… cor da pele.

Registe-se por curiosidade, en passant, que na generalidade das suas etnias os chineses são mais brancos do que os brancos’, como eu vi (e espantou os primeiros mareantes portugueses que lá aportaram).

O caráter engenhoso que JAS distingue nos chineses – mas inúmeros não o são, como há muitos portugueses e… abexins que o são – não tem nada a ver com os traços físicos dominantes nos Han. Tal como a sua impressionante riqueza de hoje não está ligada aos olhos mais ou menos em bico. Chineses que foram um século antes muito pobres, e antes ainda, durante milénios, os mais ricos do planeta. E não consta que os olhos em bico deles tenham mudado.

Do mesmo modo, nem todos os judeus são músicos e cientistas, nem todos os filipinos são cantores, como poderia parecer pelo facto de serem filipinas quase todas as excelentes cantoras que animavam as (minhas) noites de Macau. E nem todos os negros são bons, nem todos os ‘brancos’ maus.

E se for como JAS parece pensar, porque distingue uma suposta persistência dos alemães… se são brancos como outros? Ou estará a construir mais uma ‘raça’? E os nórdicos, que diz muito organizados, porque os distingue dos outros se os considera também brancos?

4. Quanto ao racismo, o que o define não é a desigualdade de direitos atribuída a diferentes grupos humanos pela sua suposta superioridade, como JAS diz. Se fosse, chamar-se-ia racismo, por exemplo, à desigualdade legal de direitos entre mulheres e homens (até há bem pouco tempo prevalecente no nosso país), ou à desigualdade entre os senhores da terra e os servos da gleba na Idade Média, ou entre nobres e burgueses no Ancien Régime, ou entre analfabetos e os alfabetizados, etc.

O que é afinal o racismo? É precisamente a associação errada entre traços físicos, característicos ou predominantes nas várias comunidades humanas, e qualidades intelectuais e de caráter (a ‘organização’ nos nórdicos, a ‘persistência’ nos alemães, o ‘engenho’ nos chineses, para não imaginar as que se atribuem aos deserdados dos negros). Ideia que é científica, verificável e observavelmente falsa.

E se fosse verdadeira, não poderia legitimar uma desigualdade de direitos e qualquer tipo de discriminação, neste caso tem JAS toda a razão.

5. As características físicas, como a cor da pele, forma das pálpebras, cor dos olhos, textura dos cabelos, etc., são geneticamente determinadas, o que não significa que não se matizem na sucessão das gerações, das combinações, na inserção migrante noutros meios físicos ou na transformação dos habitats.

Entre a minha primeira estada em Macau, nos anos 60, e a última, nos anos 90, a transformação física operada nas jovens chinesas foi gritante. Leite, hambúrgueres e… abertura ao mundo obligent.

Os descendentes de emigrantes japoneses nos EUA são em média mais altos do que os pais e deixam de contrair as doenças que tinham no Japão, passando a ter as do país de acolhimento.

A propósito, lembro ainda que um estudo americano comprovou estatisticamente a intrigante nítida vantagem na aprendizagem e do domínio da Matemática dos alunos extremo-orientais, especialmente chineses. Significativamente, um outro estudo viria a verificar que essa superioridade, bem nítida estatisticamente, se circunscrevia aos alunos orientais de cultura confuciana e… às primeiras gerações de emigrantes. Nas seguintes entravam na média, com as variações individuais normais. Facto que remetia para uma explicação de caráter cultural. Evidência que determinaria uma sucessão de estudos sobre as razões do desenvolvimento explosivo de países e territórios do Extremo Oriente, então designados por ‘pequenos dragões’, Coreia do Sul, Singapura e Hong Kong. São todos de dominante tradição cultural confuciana! Sem prejuízo, claro, de que essa clara superioridade na Matemática possa estar ligada a particularidades civilizacionais mais complexas.

Se quisermos descobrir por que estão os chineses, entre todos os grupos, sobre-representados nas universidades da Califórnia – e, porventura, os negros ou hispânicos sub-representados – não encontraremos uma resposta na genética.

6. Importa ainda dizer que a capacidade de um indivíduo para algum tipo específico de inteligência depende de fatores genéticos. O que não é verdadeira é a ideia de que haja grupos de genes que distingam com algum tipo específico de inteligência grupos inteiros de seres humanos (JAS diz ‘raças’).

Não há ‘o’ gene da inteligência – na verdade, milhares deles interferem na formação da capacidade intelectual.

Definir inteligência, se isso fosse possível, é muito complicado: além do raciocínio lógico, há outras características que também podem ser consideradas como inteligência, nomeadamente a capacidade musical.

O talento musical, o poder de visualizar ou raciocinar de forma abstrata, por exemplo, são afetados pelos genes, mas não são estabelecidos pelos mesmos que influem nas características físicas associadas ao facto de sermos ‘brancos’, extremo-orientais ou negros.

E também não há, refira-se, nenhuma relação entre esse conjunto de genes responsáveis pelas características físicas, pigmentação da pele, por exemplo, e os que formam o sistema nervoso central. Um negro africano pode ser (e é vulgar que seja) geneticamente mais parecido com um branco português como eu do que com um vizinho negro.

Por isso a ciência defende que o conceito de ‘raça’ (enquanto grupo que compartilharia características físicas e composição genética) simplesmente não existe. Raça é uma palavra sem nenhuma fundamentação na realidade biológica.

7. Para terminar ludicamente, proponho a JAS um exercício prático, porventura iluminador:

Em que raça coloca os meus filhos, graças a Deus bem diferentes de mim? Têm um pai com ascendência nórdica, uma genealogia referenciada, pelo menos, ao ‘decepado’ de Toro e todas as componentes genéticas de um português nascido a norte do Tejo; e uma mãe oriental, sino… não sei o quê, por ser bem diferente do tipo dominante nas chinesas do Sul que bem conheci, de início todas iguais, mas que aprendi a distinguir.

E em que raça se colocará a si próprio JAS, claramente, parece-me, com uma riquíssima ascendência semita magrebina? Bem diferente, aliás, da sua mulher, que eu diria tão diferente de si como a minha de mim.

8.Tudo isto para não falar da etiologia do racismo, que, como estamos todos os dias a ver, não exclui alvos de nenhuma cor de pele.

Um abraço do seu amigo, admirador e… editor com orgulho,

*Abordarei a questão interessante do binómio grupos humanos/culturas num próximo artigo

 

por Guilherme Valente, editor da Gradiva