«Amanhã ainda seremos humanos?»

Questionei-me sobre o significado do cartaz e os motivos que terão levado o seu autor a produzi-lo e colá-lo na parede na rua, anonimamente. Recordei, ainda, o poema de Alberto Caeiro: «Falaram-me os homens em humanidade, / Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. / Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. / Cada…

Este cartaz cruzou o meu caminho na Rua Antero de Quental, em Lisboa, e fiquei intrigada com o seu significado. O cartaz, colado na parede (e que alguém já tentou arrancar), tem a inscrição: «Amanhã ainda seremos humanos?» e inclui uma fotografia de vários rostos em que vão encaixando outros rostos, entre as caras conhecidas de Putin e Trump; uma fotografia de duas pessoas com os olhos e a boca tapados; e, ao lado da inscrição, uma das pinturas da série «O grito» de Munch.

Questionei-me sobre o significado do cartaz e os motivos que terão levado o seu autor a produzi-lo e colá-lo na parede na rua, anonimamente. Recordei, ainda, o poema de Alberto Caeiro: «Falaram-me os homens em humanidade, / Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. / Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. / Cada um separado do outro por um espaço sem homens.»

Olhando para os rostos de anónimos enquadrados por Putin e Trump e articulando essa imagem com a pergunta pungente «Amanhã ainda seremos humanos?», pensei que o cartaz teria uma mensagem política, uma vez que, recentemente, o presidente da Rússia anunciou que Moscovo começará a desenvolver mísseis nucleares terrestres de alcance curto e intermediário se os Estados Unidos começarem a fazer o mesmo, após o fim do histórico Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário. Esta notícia leva a equacionar a questão, mais do que continuarmos a ser humanos, de a humanidade ter futuro.

A fotografia do homem e da mulher (que, no fundo representam toda a humanidade) de olhos e boca tapados fazem pensar no provérbio japonês dos Três Macacos Sábios ou «Mizaru Kikazaru Iwazaru», que pode ser traduzido como «Não ouça o mal, não pronuncie o mal, não veja o mal». Este provérbio pretende lembrar que, se as pessoas não ouvissem, não pronunciassem e não vissem o mal alheio seria mais fácil construirmos comunidades pacíficas, que vivessem em paz e harmonia. Porém, pela imagem real a que estão associados, muitos consideram que se trata de uma representação negativa das pessoas que preferem não ouvir nem ver o que se passa e, consequentemente, não denunciam a injustiça do mundo. É esta a interpretação que faz sentido neste cartaz.

O último elemento que consta deste cartaz é uma das quatro pinturas da série pintada pelo norueguês Edvard Munch, em 1893, intitulado «O Grito» (em norueguês, «Skrik»), que representa uma figura humana num momento de profunda angústia e desespero existencial. Também quanto a estes quadros há uma interpretação errada: alguns pensam que é a figura que grita, mas não é assim. A figura humana ouve um grito desesperado e desesperante. O próprio pintor disse: «Eu caminhava com dois amigos, o Sol pôs-se, o céu tornou-se vermelho-sangue, e eu senti como que um sopro de melancolia. Parei, apoiei-me no muro, mortalmente fatigado; sobre a cidade e o fiorde, de um azul quase negro, planavam nuvens de sangue e línguas de fogo. Os meus amigos continuaram o seu caminho. Eu fiquei no mesmo lugar, tremendo de angústia. Parecia-me escutar o grito imenso, infinito, da natureza». Este grito existencial que ecoa na pintura traduz bem o desespero e a inquietação da pergunta formulada no cartaz.

O historiador israelita Yuval Noah Harari, que se tornou conhecido há poucos anos com os best-sellers Homo Sapiens e Homo Deus, foi convidado pelo Fórum Económico Mundial, em Davos, no ano passado, para responder à grande questão: «Será o futuro humano?». E a sua resposta é quase óbvia: «Só se percebermos o que nos faz humanos poderemos continuar a ser humanos».

Diz Harari, em entrevista ao jornal Público, que «os três grandes problemas que a humanidade enfrenta hoje são, na sua natureza, globais; por isso, só podemos lidar com eles através da cooperação global. (…) Os três problemas a que me refiro são a guerra nuclear, as mudanças climáticas e a desestruturação tecnológica». Diz, além disso, que importa ensinar as crianças a construir uma personalidade e identidade de forma a acolher, e não a resistir, às mudanças futuras: «No passado, a educação construiu identidades humanas como casas de pedra – com fundações profundas e paredes sólidas. Agora, temos de construir identidades humanas como tendas, que consigamos facilmente dobrar e transportar».

E acrescenta, preocupantemente, que: «no século XXI será cada vez mais fácil para os governos e corporações manipular e controlar as nossas emoções. Para o fazer, são necessárias três coisas: 1) um bom entendimento geral de como funciona o cérebro humano; 2) muita informação sobre a pessoa; e 3) uma grande capacidade informática para analisar os dados que temos e prever como é que o cérebro da pessoa vai reagir a diferentes situações. Em eras anteriores, ninguém tinha um bom conhecimento do cérebro humano, ninguém conseguia reunir uma grande quantidade de dados sobre cada indivíduo e ninguém tinha a necessária capacidade informática para analisar tantos dados. Mas, em breve, os governos e as grandes empresas terão estas três coisas. E aí conseguirão manipular-nos com uma eficácia sem precedentes. (…) Para resistir a estas manipulações temos de conhecer muito bem os nossos sentimentos, mas também temos de nos lembrar de que o que sentimos não é necessariamente a verdade».

Sem pretender ser pessimista, considero que este cartaz deveria fazer-nos pensar seriamente sobre o futuro da humanidade. Ainda bem que ele cruzou o meu caminho e me fez refletir sobre aquilo que seremos e onde chegaremos.

P.S. Nesta 185ª crónica termina a primeira série de crónicas intitulada “Em todas as ruas te encontro”, publicada no semanário SOL online. Até à próxima série, ainda sem data de início prevista!

Maria Eugénia Leitão