No reino do ‘faz de conta’…

A oposição de direita só conseguiria levar o Governo ‘ao tapete’ se tivesse artes para aliciar o Bloco e o PCP (ou o Bloco e o PAN). E não tem

Apropósito do programa do Governo, cujo debate foi marcado com intervalo escasso para os deputados o examinarem, Rui Rio estranhou a pressa e reprovou-a, por achar que «querem fazer de conta; cumprir calendário», concluindo, lesto, que «é esta hipocrisia que desprestigia». 

O líder (‘provisório’) da bancada social-democrata – em regime de ‘acumulação’ com o candidato a segundo mandato à frente do PSD – teve o que se chama uma ‘entrada de leão’, ao regressar ao hemiciclo, finalmente varrido dos seus críticos. 

Descontado o folclore de apresentação dos deputados – que meteu, inclusive, um número ‘radical’, com assessor de saiote muito Livre – o curto prazo concedido aos deputados para se inteirarem do programa reduziu-o a uma formalidade. E ‘ala que se faz tarde’. 

Rio antecipou-se no Twitter, por ‘uma unha negra’, ao comunicado de Luís Montenegro, concorrente da liderança, que não se limitou a censurar o calendário, preferindo enfatizar a substância das coisas. E fê-lo de lâmina afiada.

Para Montenegro, este Governo «é um susto», e lembrou que continuamos a marcar passo na Europa, onde 20 países em 28 estão «a crescer mais do que nós». 

O despertar tardio de Rui Rio para a oposição mereceu a Montenegro uma frase cáustica: «Tem de acabar o tempo de o PSD andar de cócoras perante o PS».

De facto, o PSD andou tempo demais a reboque da ‘geringonça’, que continuou a rolar, sem sobressaltos, apesar dos incêndios fatais, da estrada colapsada de Estremoz ou do caos na Saúde. Em momentos cruciais, Rio esteve ausente, mantendo um incompreensível silêncio. 

Montenegro não o poupou. Até porque sabe de antemão da pouca vontade do líder em andar de ‘candeias às avessas’ com Costa… para além do ‘fazer de conta’.

Mesmo sem ‘papeis assinados’, o espírito da ‘geringonça’ paira sobre o novo Executivo, porque é da natureza intrínseca dos parceiros, conluiados com a fantasia das ‘contas certas’ – uma ‘conquista’ de Mário Centeno, cuja originalidade corresponde à asfixia do investimento e dos serviços públicos, com os hospitais a rebentarem pelas costuras. 

Dir-se-á que ‘o que lá vai, lá vai’, e que agora o que importa é habilitar o país para enfrentar «os sinais que se esboçam de desaceleração económica internacional», como profetizou Marcelo Rebelo de Sousa, após diagnosticar «uma forte possibilidade de haver uma crise na direita portuguesa nos próximos anos». 

Foi tão ‘realista’ que acertou em cheio, com o CDS a viver uma das crises mais agudas da sua existência e o PSD a mascarar a derrota, no meio de uma falsa euforia, por ter perdido menos do que as sondagens e os comentadores previam.

Talvez nem Marcelo esperasse ser tão certeiro, na sua nunca negada ‘alma de comentador’, perante um resultado que maltratou e fragmentou a direita, abrindo espaço ao Chega e à Iniciativa Liberal, cujos deputados solitários não podem aspirar a grandes voos.

Como lembraria António Costa logo a seguir a ser indigitado primeiro-ministro, «não há uma maioria para aprovar uma moção de rejeição», acrescentando, sibilino: «Não sei se o PSD pretende apresentar alguma ao programa de Governo do PS». 

Não apresentou. A oposição minoritária de direita, em teoria, só conseguiria levar o Governo ‘ao tapete’ se tivesse artes para aliciar o Bloco e o PCP (ou o Bloco e o PAN). E não tem.

Resta saber qual poderá ser o «equilíbrio de poderes», papel que Marcelo Rebelo de Sousa ‘reivindicou’ para o Presidente, se a direita fosse penalizada pelo eleitorado, como foi. Ultrapassado o susto de ficar ‘manietado’ por uma maioria absoluta do PS – ou até por uma maioria parlamentar de dois terços à esquerda –, Marcelo respirou fundo. 
O Presidente da República está já demasiado ocupado com os ‘preliminares’ para repetir o mandato, sem estorvos nem resistências. E, por isso, deve ‘rezar’ para que não surjam novos sarilhos nem embaraços com este Governo, em formato XL, que gastou quase uma hora só para assinar o livro na Ajuda. No reino do ‘faz de conta’, instalado o partido-Estado, resta engordar o ‘monstro’…

Nota em rodapé: Feliciano Barreiras Duarte escreveu neste jornal que é urgente que «se escrutine quem escrutina, que se fiscalize quem fiscaliza (…) e quem está a levar (com poucas exceções) o jornalismo para a sarjeta». O quadro pintado é negro e lembra as ‘santas cruzadas’ de Rui Rio contra os media e os jornalistas.

É inegável que há quem pratique mau jornalismo, como não falta quem perverta a política, desviando-a por atalhos insalubres. 

Estranha-se, porém, que o colunista – um político na reserva, com acesso aos corredores do poder –, não queira promover o escrutínio de quem está a levar, ‘com poucas exceções’, a política para sarjeta…