Segundo se sabe, José Sócrates, interrogado por Ivo Rosa e Rosário Teixeira, negou todas as acusações da Operação Marquês.
Com a veemência que lhe conhecemos – e que curiosamente Lula também partilha -, Sócrates considerou «delirantes» e «monstruosas» as conclusões do Ministério Público, atacou o procurador, pintou a manta.
É o seu estilo.
Também é verdade que, se admitisse um só dos crimes que lhe são imputados, admitia todos – pois a base de todos é igual.
Ou negava todos ou aceitava todos.
De acordo com a acusação do Ministério Público, Sócrates foi corrompido por várias entidades, sendo os pagamentos correspondentes canalizados primeiro para o primo José Paulo e depois para o amigo Carlos Santos Silva – que lhe foram fazendo chegar o dinheiro às mãos por diferentes vias.
Tudo isto está documentado: as transferências de diversos protagonistas para Santos Silva, e as entregas de Santos Silva a Sócrates, quer pagando-lhe despesas, quer entregando-lhe quantias em dinheiro, designadamente através do motorista.
Sócrates não desmente nada disto – nem podia – mas diz uma coisa muito simples:
1. Não tem nada que ver com o dinheiro de Carlos Santos Silva, portanto desconhece a sua origem;
2. Os pagamentos que Santos Silva lhe fez ou o dinheiro que lhe entregou foram a título de empréstimo.
E daqui não sai.
Claro que, se as coisas fossem assim tão simples, Portugal tornar-se-ia o paraíso da corrupção.
Eu, jornalista, publicava uma notícia falsa com grande repercussão financeira a pedido de alguém; esse alguém depositava uma quantia na conta de um amigo meu; este amigo começava a pagar-me as despesas e eu passava a fazer uma vida de rico.
Repito: se a tese de Sócrates fosse aceite, a corrupção em Portugal tornava-se o pão-nosso- de-cada-dia.
Mas Sócrates pode sustentar a sua versão no interrogatório, exatamente por afirmar que o dinheiro é do amigo.
A partir daí, não tem nada que explicar.
Quando lhe perguntam donde veio, ele responde com toda a calma: ‘Não sei, porque o dinheiro não é meu’.
E quando o questionam sobre as entregas que o amigo lhe fez, ele diz: ‘É dinheiro emprestado, e portanto ninguém tem nada com isso’.
Daqui se conclui que foi interrogado o homem errado.
Quem deveria estar no lugar de Sócrates não era ele mas o amigo Carlos Santos Silva.
Que teria de conhecer a origem do dinheiro que recebeu e as circunstâncias em que o entregou a Sócrates.
Santos Silva teria de responder a perguntas como:
1. Por que razão comprou apartamentos à mãe de Sócrates? Vendeu-os depois? Ganhou dinheiro com a venda? Está a explorá-los? Logo aí se perceberia a convicção com que Santos Silva fez o negócio ou se foi apenas uma maneira enviesada de passar dinheiro para o universo de Sócrates (a quem a mãe o entregou depois);
2. Por que razão recebeu dinheiro de Hélder Bataglia? Tinha negócios com ele? Fez algum trabalho para ele? Logo aí se veria a razoabilidade dessas transferências ou se foram apenas um modo de passar dinheiro do BES (lembre-se que Bataglia disse que fez o depósito a pedido de Ricardo Salgado) para as mãos de Sócrates;
3. As grandes quantias que recebeu do Grupo Lena foram pagamentos de trabalhos efetivos feitos para o grupo? Quais? E onde está a faturação desses trabalhos? Uma vez mais, se Santos Silva não soubesse explicar os pagamentos concluir-se-ia que o dinheiro não era para ele mas para outrem e para pagamento de ‘outros’ serviços;
4. Por que pagou prestações bancárias do monte da ex-mulher de Sócrates? Era também um empréstimo? A quem? A Sócrates? À ex-mulher? Ou era uma forma de pôr dinheiro na esfera de Sócrates?
5. Por que razão comprou o apartamento em Paris? Queria pô-lo a render? Mas quem iria para lá era o filho de Sócrates… Este pagaria renda? Ou era mais um empréstimo? Ou um favor? E quem decidiu as obras no apartamento? Por que razão as ordens ao arquiteto eram dadas por Sócrates ou mesmo pela sua ex-mulher?
Julgo que um interrogatório bem conduzido a Carlos Santos Silva tornaria claro aquilo que está à vista de todos: muito do dinheiro que ele recebia não se lhe destinava; ele era apenas uma placa giratória destinada a passar dinheiro para a órbita de José Sócrates.
Todos os indícios apontam nesta direção.
A menos que Santos Silva seja um super-homem, não acredito que conseguisse explicar de forma convincente todos os dinheiros que recebeu e todas as quantias que entregou ao ex-primeiro-ministro.
É que, ao contrário de Sócrates, ele não poderia dizer: ‘Não sei donde vinha o dinheiro e a que se deviam os pagamentos’. E teria de explicar muito bem os ‘empréstimos’ ao amigo, de modo a tornar claro que eram mesmo empréstimos e não a devolução de dinheiro depositado na sua conta e destinado a Sócrates.
Repito: teria sido muito maios frutuoso começar por interrogar Carlos Santos Silva em vez de José Sócrates.
Sócrates não adiantou nada; Santos Silva poderia esclarecer tudo.