Um debate à porta fechada…

Graças às restrições impostas, a função jornalística, nesta fase do processo, assemelha-se a uma espécie de ‘exercício sem rede’, suscetível ainda de cair sob a alçada da Justiça – a confirmar-se que o juiz Ivo Rosa mandou extrair uma certidão para investigar fugas de informação para órgãos de comunicação social que reportaram o interrogatório. Vão…

Talvez sem querer, o juiz Ivo Rosa ‘validou’ os relatos vindos na imprensa, ‘filtrados’ do debate instrutório pedido por alguns dos arguidos da Operação Marquês, ao mandar retirar os telemóveis e outros acessórios de comunicação aos advogados presentes na sala. 

Se as fontes dos jornalistas impedidos de assistir às diligências – mesmo constituídos assistentes e com o aval da Relação – não tivessem sido fiéis, é de duvidar que aquele magistrado se tivesse dado ao trabalho de ameaçar, primeiro, e de mandar recolher depois os equipamentos dos causídicos, facto inédito.

Mesmo assim, José Sócrates ainda zombou com os jornalistas, ao declarar ter ficado com «a sensação que as fontes habituais (…) estão um pouco desorientadas». Se for a julgamento, aberto ao público e aos media, já não correrá esse risco…

Graças às restrições impostas, a função jornalística, nesta fase do processo, assemelha-se a uma espécie de ‘exercício sem rede’, suscetível ainda de cair sob a alçada da Justiça – a confirmar-se que o juiz Ivo Rosa mandou extrair uma certidão para investigar fugas de informação para órgãos de comunicação social que reportaram o interrogatório.

Vão longe os tempos em que os jornalistas eram bem-vindos ao Tribunal de Polícia, instalado no Calhariz, perto do ‘bairro da tinta’, designação que então ‘pintava’ o Bairro Alto, berço da maioria dos principais jornais de circulação nacional. 

Mas nessa altura estavam em causa julgamentos sumários de ‘pilha galinhas’ e vendedores ambulantes, que não se comparavam aos atuais suspeitos de amealharem milhões em paraísos fiscais, rodeados de sofisticados e bem pagos advogados. 

Eram julgamentos que permitiam ainda, aos ilustres magistrados, exibirem uma forte produtividade, porque ‘aviavam’ numa manhã três ou quatro desgraçados presentes a juízo, sem precisarem de ‘consumir as pestanas’ a ler milhares de páginas para estarem em condições de interrogar os arguidos.

As coisas mudaram muito. E os casos de polícia também, enquanto no Bairro Alto definharam os jornais e perderam-se os pregões dos ardinas, hoje sedentarizados e cada vez com menos papel impresso para vender. 

Assim, a fazer fé nos relatos da imprensa, ao quinto dia Sócrates tirou da cartola uma herança da mãe de «um milhão de contos» que, alegadamente, terá servido em parte para lhe pagar férias dispendiosas e outros extras, que não eram conciliáveis com os seus modestos recursos financeiros. 

Sócrates quis ser, aliás, tão ‘genuíno’ neste debate instrutório que nem se terá dado à maçada de ler, na íntegra, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra si, embora não se iniba de classificá-la como «monstruosa», prometendo não deixar que fique «pedra sobre pedra».

Caberá naturalmente ao juiz, a quem ‘calhou em sorte’ este imbróglio, numa atribulada ‘tômbola’ informática, apreciar a bondade das respostas dadas pelo ex-primeiro-ministro socialista, e pelos demais arguidos, já ouvidos ou a serem ouvidos, numa história que dispõe de todos os ingredientes para ser um bestseller. Haja quem a escreva. 

De facto, trata-se de um argumento original, ao qual não faltam sequer, como se viu, heranças chorudas, algo deveras inspirador para qualquer script writer.

Há de tudo, desde um abastado amigo de infância («homem honesto», Sócrates dixit…), pródigo em empréstimos, sem cuidar de garantias que se saiba, até a um primo, citado no processo, como virtual ‘herdeiro’ de umas bagatelas de milhões, depositadas algures em nome do mesmo «amigo de infância». 

Desta vez, Sócrates submeteu-se, sem aparente esforço nem contrariedade, a sucessivos banhos mediáticos, à entrada e à saída do tribunal, onde prestou declarações para, ao que martelou, «repor a verdade», num processo onde é acusado de 31 crimes, que vão do branqueamento de capitais à corrupção e fraude fiscal ou à falsificação de documentos.

Se o conseguiu só se saberá no decurso de 2020, quando o titular do processo exarar a sentença, que o levará ou não a julgamento. 

Mas, ao menos agora, Sócrates não se queixou do assédio dos jornalistas, nem das câmaras e microfones em direto que o perseguiam desde que saía até que entrava no carro onde se transportava. 

Pelo contrário. O antigo primeiro-ministro socialista não deixou escapar, em nenhum momento, o menor gesto de enfado ou de desconforto perante a insistência dos jornalistas, estoicamente ‘acampados’, horas a fio, à porta do tribunal.

A Operação Marquês, já com um histórico respeitável, oferece contornos ‘apimentados’ e invulgares. Afinal, trata-se de um ex-governante que tem sabido utilizar os media para protestar a sua inocência e ‘malhar forte e feio’ em juízes e procuradores, desvalorizando as conclusões da investigação.

Quando um arguido acha «delirante» a acusação formulada pelo Ministério Público, num despacho final que ocupou milhares de páginas, os capítulos seguintes da história prometem ser vibrantes e irresistíveis. 

O folhetim garante, à partida, repercussão mediática e constitui um desafio à credibilidade e à eficácia da Justiça. 

O juiz Ivo Rosa, que nem sempre ganhou notoriedade pelas melhores razões (acumulou, desde 2017, uma dezena de revezes junto do Tribunal da Relação de Lisboa), terá de sopesar bem o que lhe cabe julgar, antes de decidir sobre o destino de Sócrates e dos outros arguidos. 

De facto, o processo é o epicentro de um complexo novelo, com ramificações diversas e não poucos ‘castelos na areia. 

Num país de fraca memória e com uma Justiça lenta e garantística, os bons causídicos sabem encontrar expedientes dilatórios para poupar os seus clientes a maiores incómodos.

O desfecho da Operação Marquês será um teste importante num Estado de Direito. E um diagnóstico ao estado das coisas. 

 

Nota em rodapé – Segundo uma versão que circulou nas redes sociais, a RTP suspendeu o ‘direto’ que estava a efetuar do debate do Programa do Governo no Parlamento, em coincidência com a intervenção do deputado André Ventura, do Chega, retomando-o logo a seguir. Se aconteceu assim e foi um ato deliberado, estamos perante uma deplorável atitude censória, imprópria do operador público. Se aconteceu por lapso, conviria que a Direção de Informação da RTP se explicasse e se assumisse. Em que ficamos?