Crime com castigo

Se alguém abandonar um cão à sua sorte na via pública, será fortemente penalizado pela sociedade, independentemente dos motivos que estiveram na base dessa atitude, arriscando mesmo um processo crime. Mas se uma mãe largar o seu filho recém-nascido num contentor de lixo, condenando-o a uma morte atroz e bárbara, provocada pelo sofrimento causado pelo…

Se alguém abandonar um cão à sua sorte na via pública, será fortemente penalizado pela sociedade, independentemente dos motivos que estiveram na base dessa atitude, arriscando mesmo um processo crime.

De nada lhe valerá recorrer-se do argumento da impossibilidade de sustentar o animal, desculpa que não será tolerada, pelo que nenhuma circunstância atenuante poderá aliviar a pena que lhe vier a ser infligida.

Mas se uma mãe largar o seu filho recém-nascido num contentor de lixo, condenando-o a uma morte atroz e bárbara, provocada pelo sofrimento causado pelo frio, pela fome e pela sede, poderá encontrar compreensão para o seu tresloucado acto, não só dentro da sociedade como também, imagine-se, por parte do poder político vigente.

Este meu comentário não assenta numa simples suposição, mas sim refere-se a um acontecimento real com que fomos surpreendidos há escassos dias.

Inexplicavelmente gerou-se uma onda de solidariedade para com a autora do crime de tentativa de homicídio do seu próprio filho, procurando-se encontrar uma panóplia de desculpas que possam conduzir, eventualmente, à descriminalização da acção praticada.

Até Marcelo Rebelo de Sousa, que ainda não aprendeu que estar calado também é sinónimo de inteligência e de sabedoria, não se conteve de vir para as televisões desempenhar o seu papel de comentador, opinando sobre o que não sabe, mais parecendo que estávamos perante o advogado de defesa da mãe criminosa e não na presença do mais alto magistrado da Nação.

Um grupo de causídicos juntou-se mesmo com o propósito de reclamar a libertação da senhora, argumentando não estarem reunidas as condições penais para a medida de coacção que lhe foi aplicada, ou seja, a prisão preventiva.

Um pouco por toda a parte se tem ouvido que a mãe que procurou acabar com a vida do seu filho recém-nascido precisa antes de acompanhamento médico, atendendo ao seu frágil estado de espírito psicológico, e não de sofrer ainda mais dentro de uma instituição prisional.

Mas será que endoidecemos de vez?

Perante um crime, agravado pela sua natureza ignóbil, porque cometido contra um ser puro e indefeso, deixa-se a aplicação da justiça para um segundo plano e a sociedade afunda-se em inusitados debates que têm apenas como finalidade buscar-se a compreensão por quem, com requintes de maldade, atentou contra uma vida humana, ainda por cima sangue do seu sangue.

Uma criança, pelo simples facto de ter acabado de vir a este mundo, não está desprovida de igual protecção jurídica do que um adulto. Muito pelo contrário, a sua condição de vulnerabilidade obriga a uma responsabilização acrescida de quem atentar contra os seus mais elementares direitos, a começar pelo primeiro de todos, o direito a viver.

E, nestes casos, a justiça tem que ser exemplar, agindo com celeridade e sem contemplações, por forma a que se constitua num elemento dissuasor para quem pretenda seguir o mesmo caminho.

Se a justiça se manifestar fraca ao lidar com casos deste tipo, corre-se o risco de que outros pais, conhecedores de que o seu comportamento será perdoado, enveredem pelo mesmo trajecto, abandonado à sua sorte um filho indesejado.

Com sorte, talvez até recebam mesmo alguns afectos do homem das selfies.

Claro que não podemos descartar a probabilidade de que a mãe, que agora quis pôr fim à vida do filho, não tenha tido plena consciência do que estava  a fazer, mas essa avaliação compete em exclusivo ao tribunal, em sede de inquérito ou de julgamento, definindo, na altura, a eventual atenuação da pena e o cumprimento desta noutro estabelecimento  privativo da liberdade, que não uma prisão.

A ninguém, e muito menos a quem está investido de poderes constitucionais, se poderá tolerar que interfiram com o processo normal da justiça e se antecipem aos juízes em conclusões que somente deverão ser baseadas em observações clínicas autorizadas e credíveis.

Até se chegar a essa fase, esta mulher, beneficiando, naturalmente, da presunção da inocência que as leis penais lhe concedem, deve ter um tratamento em nada distinto do que o aplicado a outros arguidos.

Seria, certamente, um completo desacreditar do sistema judicial português se ela, não restando quaisquer dúvidas da prática do crime de que é acusada, não venha a sentar-se no banco dos réus, apenas porque à sua volta, em alguns sectores da sociedade, se gerou uma patética onda de solidariedade, tomando-se como banal procurar matar-se uma criança, com escassas hora de vida, através da fome e do frio.

Considero-me um humanista mas, no entanto, defendo, sem hesitações, que uma pessoa que lança um recém-nascido para um contentor de lixo, como se se tratasse de um trapo velho, não merece a minha compreensão, nem de ninguém que esteja no seu perfeito juízo, mas tão só raiva e revolta perante tamanha desumanidade.

O perdão divino é uma regalia exclusiva de Deus. Aos homens compete garantir que a justiça seja implacável para com os autores de crimes desta natureza, malgrado as razões que estiveram na sua génese.  

 

Pedro Ochôa