O populismo desceu à cidade?…

A ministra da Justiça visitou a mulher que deitou um bebé no lixo e o ministro da Educação defende o fim dos chumbos. Não será isto populismo?

Há um certo ‘estado de entorpecimento’ que alastra no país, como se fosse coisa normal, provocado por uma espécie de anestesia cirúrgica que adormece quem deveria reagir e contagia os media, pressurosos na obediência e amplificando os efeitos.

Os hospitais públicos agonizam, com médicos a demitirem-se, urgências a fecharem, medicamentos em falta, cirurgias e consultas adiadas, e os pacientes em fila de espera em desespero, a maioria sem recursos para procurar alternativa nos privados.

Porém, a inacreditável ministra da Saúde – devota do hino da Internacional Socialista, reconduzida apesar da sua miopia ideológica e das óbvias limitações para o cargo – debita banalidades, como se estivesse tudo a funcionar no melhor dos mundos. É um discurso reincidente, ofensivo da inteligência. Mas di-lo com um à-vontade desconcertante.

Uma mulher cabo-verdiana, sem abrigo, lança um filho recém-nascido num contentor de lixo. A criança foi salva, no limite, por outros sem abrigo e a mãe identificada e detida.

O Supremo Tribunal rejeitou a sua libertação, após um pedido de habeas corpus, por haver a convicção de que a mulher agiu premeditadamente.

Porém, a ministra da Justiça, por acaso magistrada originária do Ministério Público, achou natural visitar a reclusa, com as televisões à trela, para se inteirar do seu estado de alma.

Aparentemente, retirou-se aliviada com a forma como está a ser tratada. Imagine-se a inveja das outras reclusas, condenadas por crimes diversos, que nunca avistaram a ministra na cadeia de Tires, tão-pouco puderam contar-lhe as suas desventuras e serem por ela reconfortadas. Não será isto populismo?

Um aluno agrediu uma professora à cabeçada numa escola de Linda-a-Velha, a qual precisou de receber assistência hospitalar. Claro que o adolescente tem «transtornos neurológicos», como logo apurou o Expresso, o que será um ótimo ‘salvo-conduto’ para outros comportamentos similares, enquanto os diligentes psicólogos estudam a perturbação.

Não é caso único. A violência nas escolas tem progredido paulatinamente perante a indiferença dos poderes públicos, que nada têm feito para repor a disciplina e reforçar autoridade dos professores.

A tal ponto, que o Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE) defendeu recentemente que as agressões a professores, em contexto escolar, devem ser consideradas um crime público e não semipúblico, como atualmente acontece,

o que na prática «constitui uma demora de quatro a cinco meses no tratamento dos processos, resultando na sua maioria das vezes em nada».

Porém, como o atual ministro da Educação continua entretido a ‘desconstruir’ o sistema de ensino, não dispõe, por certo, de tempo para averiguar as razões do fenómeno.

Empenhado em eliminar os exames até ao nono ano de escolaridade, o ministro – a quem o sociólogo António Barreto chamou «o papagaio da Fenprof», num artigo no DN – continua surdo às críticas e a desferir novos rombos na preparação das gerações futuras. Em contrapartida, ainda advoga que «treinar para os exames é pernicioso e nocivo». Trocar a exigência nas escolas pelo facilitismo não será… populismo?

Nos transportes públicos, o Metro, os comboios ou os barcos no Tejo andam abarrotados, sobretudo depois da medida eleitoralista de António Costa, ao lançar os passes sociais ‘a pataco’. Porém, com a insuficiência e a degradação do material circulante, repetem-se as avarias por falta de manutenção.

Em alternativa, semeiam-se a eito bases de trotinetes e de bicicletas, em nome da ‘modernidade’ e da ‘mobilidade’, criando corredores especiais a ‘torto e a direito’, piorando a circulação de trânsito; e, mesmo assim, os velocípedes ainda invadem os passeios, em jeito de gincana irresponsável, pelo meio dos peões. Mais populismo?

Na tropa, o ministro das Defesa procura arrumar a pasta de Tancos, que ‘vitimou’ o antecessor, enquanto dados recentes revelam que, no conjunto dos três ramos das Forças Armadas, somados os efetivos, há mais graduados do que praças. Ou seja, são mais os chefes do que os índios!…

É a falência da profissionalização das Forças Armadas, enquanto se evita falar da reposição do serviço militar obrigatório, até como compromisso cívico, por falta de coragem política. Receio de impopularidade?

No Ambiente, a trapalhada não acaba. Desde o fim próximo dos carros a diesel aos caudais do Tejo – que ora estão bem ora estão ‘a seco’ –, ou à extração de lítio, com concessões atribuídas a ‘empresas na hora’, dando cobertura a um inenarrável secretário de Estado, o ministro não para de surpreender.

Contudo, ao ‘ajudante’ – passado o susto de Boticas, amedrontado pelo protesto dos manifestantes – sobrou talento para ‘plantar’ entrevistas de autopromoção no Expresso e no Público, publicadas no mesmo dia.

No meio destes episódios avulsos, a capital rejubila com o turismo e com festividades como a Web Summit. O Município e o Governo inventaram milhões para desembolsar numa feira tecnológica, criada por um irlandês esperto – que se aproveitou para impingir camisolas de uma empresa familiar a um preço obsceno –, e que teve a habilidade de celebrar um contrato de longa duração, oferecendo em troca muitas luzes a gente que se deslumbra com facilidade.

Em uníssono, autarca e primeiro-ministro asseguraram que o retorno é garantido, coisa que nunca será demonstrável. E o Presidente da República subiu ao palco para garantir que «somos imparáveis», num improviso em inglês, no mais puro estilo de ‘pop-star’, como se fôssemos o expoente da revolução tecnológica.

Felizmente, segundo quatro académicos ouvidos pelo Público, Marcelo Rebelo de Sousa não pode ser considerado um populista. Porque não preenche os requisitos, já que «uma retórica popular não faz um populista».

A quem duvide dos académicos, Marcelo pode usar a intervenção que fez em 2017 nas Conferências do Estoril – antes da vertigem entre as luzes do palco e as sombras dos sem abrigo –, onde defendeu que «podem os líderes de cada momento pensar o contrário, porque ser-se populista, em certo momento, pode ser tentador. Podem pensar que no curto prazo ganham. Mas perdem no médio e no longo prazo, porque a vitória não é deles, é dos princípios, a vitória é de quem luta pelos princípios». Assim seja.