‘Marcelo arrisca-se a ser lembrado como um novo Américo Tomás’

De regresso ao mundo digital, o professor catedrático faz uma análise do estado do país e do mundo. 

Manuel Maria Carrilho regressou à intervenção política com um canal no YouTube. Nesta entrevista, o ex-ministro da Cultura critica Marcelo e António Costa, mas considera que, para além dos dois, Portugal está um deserto em termos de personalidades política. Para dar esta entrevista Manuel Maria Carrilho colocou uma condição: não abordar questões da vida pessoal.

A ideia de fazer esta entrevista surgiu porque tem publicado no blogue e no YouTube vários conteúdos. É uma nova forma de passar as ideias às pessoas e chegar a mais gente?
Sim. Comecei o blogue em 2003, tive um período de pausa e agora comecei também com um canal no YouTube. A ideia de ter um canal onde a par das minhas intervenções escritas pudesse fazer intervenções orais a certa altura tentou-me. E pronto, sou eu que faço tudo. É muito simples. Tive apenas um amigo que fez a entrada e o fecho, mas sou eu que monto tudo, faço isto com o iPhone. Sento-me, digo o que tenho a dizer, e agora quero fazê-lo regularmente. Têm tido bastante eco e recetividade. Procuro falar daquilo que não se fala. Penso que a comunicação social hoje está reduzida a meia dúzia de temas que se repetem ad infinito ad nauseam se podemos dizer. Tenho as minhas perspetivas, interessa a quem interessar, são minhas. Quero exprimir-me com total independência. 

Vamos começar por um ponto que tem sido alvo das suas análises: a ‘Geringonça’. O que esteve, para si, por detrás deste fenómeno?
Estamos num novo mundo, que tem quatro características fundamentais. A primeira é o individualismo extremo. A cidadania quase desaparece nessa afirmação desse individualismo extremo, que não é algo de agora, vem desde o século XVIII, mas que vem crescendo e hoje afirmamos a nossa individualidade sem quaisquer limites… E a Geringonça não teria sido possível sem isso. O segundo fator é o novo capitalismo, que correntemente se chama o financismo e é um capitalismo totalmente inédito em termos históricos. Arrancou no final do século passado mas afirmou-se nestas duas décadas. Não tem nada a ver com o capitalismo industrial, é um capitalismo especulativo, de rentabilidade máxima no curtíssimo prazo. O terceiro fator é a globalização, que não é a primeira, já houve muitas, como a do século XVI que nós fizemos. O quarto fator que fecha este quadrado e que permite que todos estes fatores também tenham outra dimensão são as novas tecnologias, que representam um salto qualitativo de modalidades de vida, definição do indivíduo, de possibilidades de comunicação, de contacto entre povos, de criação de problemas e de potencialidades enorme. O mundo  de hoje define-se por estes quatro fatores. Estar a falar de crise não faz sentido nenhum, interessa-me a mim é compreender o mundo  a partir das metamorfoses que estes quatro fatores produzem, no âmbito de um paradigma que eu chamo o modelo do ilimitado – nada tem limites, qualquer capricho individual é candidato a direito universal. É o que eu chamo o caprichismo globalizado. Além disso, a linguagem política foi substituída pela linguagem económica e assistimos a uma corrosão das instituições do Estado.

E com estes dados é mais fácil compreender a ‘Geringonça’?
Sim. E não só. O que vai acontecer nos próximos tempos, a partir destes fatores, é uma proliferação de soluções de poder em que as ideologias têm pouca importância. Aqui deu-se o caso – que eu penso que foi um mero acaso – de a solução ser encontrada desta forma. Pôde-se fazer uma narrativa de que íamos ter uma aliança de esquerda, que era uma coisa que nunca tinha sido possível depois do 25 de Abril, quando na verdade não houve nenhuma viragem à esquerda do PS. O que eu acho que houve foi uma viragem claramente à direita do Bloco e do PCP, que aceitaram todos os dogmas europeus: da economia, do financismo, da Europa, do euro, para aceder ao poder. Como se vê, António Costa não cedeu no essencial. Cedeu em muitas coisas, a meu ver, com consequências graves.

Como por exemplo?
A Educação. É um setor que foi devastado por ideias como a reutilização dos manuais. Ou, por exemplo, esta proposta inacreditável do fim dos chumbos, sem antes se dizer o que se vai fazer. Eu sou a favor do fim dos chumbos, mas eu conheço bem os sistemas europeus. No sistema finlandês ou no sueco, ainda o aluno não expressou a primeira dúvida no domínio da álgebra ou da filosofia e já tem um tutor a segui-lo e a ajudá-lo. É isso que pode, e deve quanto a mim, justificar o fim dos chumbos. Eu sempre fiz como professor os possíveis para não chumbar ninguém. Mas anunciar assim, sem mais, o fim dos chumbos, sabendo nós os problemas que existem… Eu tenho um filho no 10º ano e sei bem os problemas que existem no ensino público. Tenho também uma filha no ensino privado e sei bem o que isso é. Estamos a anos luz de poder existir esse apoio. 

Voltando à questão anterior, o que é que permitiu então a criação da ‘Geringonça’?
Neste quadro que eu tracei, nós temos fenómenos que apontam quase para a necessidade da ‘Gerigonça’. E não é por acaso que antes da ‘Geringonça’ portuguesa tivemos outras soluções de poder: o Syriza aliado com a extrema-direita, a chanceler Merkel a negociar com os Verdes a famosa coligação Jamaica, em Itália a extrema-direita a fazer governo com a extrema-esquerda e depois a fazer governos com os democratas sem sequer haver eleições pelo meio… Estas soluções de poder, que seriam impensáveis há 20 anos, totalmente incoerentes, só são justificadas por uma coisa: o poder. Conquistar o poder, estar no poder e viver a partir do poder. Isto só foi possível por uma coisa: as ideologias, dentro daqueles quatro fatores que falei, acabaram. 

Todas elas acabaram?
Onde é que está a democracia cristã? Onde está o comunismo? O anarquismo? O ordoliberalismo? Todas. Não há uma única ideologia hoje que pareça necessária à política. Pode se dizer que há umas micro ideologias, uns elementos ligados à ecologia, ao feminismo… Mas as ideologias acabaram. E acho que isso é um ponto fundamental que permitiu soluções políticas como estas. 

Mas regressemos à ‘Geringonça’…
Nós somos um país que vive na Europa. E onde se começou a governar pela norma, deixou de ser pela força, criou-se um conjunto de soluções novas – a Comissão Europeia, o Conselho Europeu, etc. –  mas que foram produzindo uma ideologia. Essa eu diria que é a ideologia oculta que neste momento em termos europeus sustenta o edifício, que é o europeísmo. 

E este está relacionado com a ‘Geringonça’?
Sim, a ‘Geringonça’ não era possível sem europeísmo. O que é que o António Costa fez com a ‘Geringonça’? Fez aquilo que manda a União Europeia. E aqui é que eu tenho uma tese diferente da maioria: nós sempre tivemos extremismo à direita e à esquerda, o que hoje temos é o extremismo ao centro. É isto a alma da ‘Geringonça’. A Europa aceitou o discurso económico para substituir o discurso político e vive-se para uma décima de défice, uma centésima da dívida e obedecer a coisas que ninguém votou. E é por isso também que a crise da democracia representativa é grande: porque nós sentimos que a maior parte das coisas que a Comissão Europeia decide não foram votadas e quando foram votadas foram rejeitadas e os líderes europeus arranjaram sempre maneira de as contornar.

Enquadremos isso no que aconteceu em Portugal.
Em 2015, Portugal estava um país atordoado, desvitalizado e rebocado. Atordoado e desvitalizado pelas medidas de austeridade, pela bancarrota, pelo passa culpa dos políticos, e rebocado pela Europa, de onde nós recebemos 10 milhões de euros por dia. António Costa, que tinha chegado ao poder com um conjunto de manobras, de estratagemas políticos eticamente muito controversos, conseguiu converter a derrota numa vitória, montando uma solução de governo maioritária do ponto de vista parlamentar. Isso foi lido como uma grande viragem à esquerda, mas tudo o que eram as grandes reivindicações da esquerda – até da esquerda do PS – não havia nada. A direita era detestada pelo país porque tinha um presidente que eu acho que chegou a ser o mais impopular de sempre e um primeiro-ministro que tinha um discurso agressivo para os portugueses. E António Costa chega com a simpatia que o caracteriza. Eu conheço muito bem o António Costa, é extremamente talentoso. 

Estiveram juntos no Governo liderado por António Guterres…
É uma pessoa muito paciente, o seu passatempo predileto é fazer puzzles de milhares de peças, é uma pessoa taticamente muito habilidosa e avançou aqui com uma solução de esquerda para fazer exatamente o mesmo – e até mais e com mais eficácia – que a Europa estava a pedir a Passos Coelho: controlo do défice, da dívida… E fez isto com uma grande habilidade, justamente jogando no individualismo extremo que caracteriza o nosso tempo. Não encontra um discurso onde ele falasse – a não ser negativamente – da austeridade. Falou sempre da reposição dos salários. O cidadão hoje prefere ter mais cinco ou 10 euros por mês no bolso e está-se nas tintas para os serviços públicos. Porque infelizmente é esse o ambiente que hoje se vive. A não ser quando nos calha a nós e temos de ir a um hospital ou temos filhos nas escolas. Ele jogou muito bem, em termos táticos, este desvio da ortodoxia europeia. Ele fê-la pagar através dos serviços públicos e não dos cidadãos. E foi isso que permitiu o sucesso da ‘Geringonça’. Foi esta capacidade tática do António Costa e uma relação privilegiada que ele teve sempre com o PCP – nunca conheci ninguém do Partido Comunista que não me dissesse quase que andou com o António Costa ao colo.  O Bloco estava ali num impasse e acabou por ceder. Não digo que eles não tenham imposto, mas a ‘Geringonça’ historicamente tem de ser lida como uma viragem à direita da esquerda.

E por que não se sustentou? O que levou a ‘Geringonça’ a não continuar?

Porque justamente estes quatro anos provaram a dispensabilidade da ‘Geringonça’. Quatro anos depois, ganhando as eleições e com as sondagens que existem e com o Presidente que existe, Costa está, do meu ponto de vista, muito satisfeito em ter ganho as eleições com maioria relativa: permite-lhe governar, assumir todos os sucessos, endossar para os adversários todos os insucessos e todos os fracassos e governar a prazo, que é como sabe governar. António Costa é tão bom aluno da Europa como foram todos os chefes de Governo. Já Cavaco Silva era um ótimo aluno, Passos Coelho foi um ótimo aluno, Sócrates também. Do meu ponto de vista a geringonça foi uma talentosa jogada política, mas foi, do ponto de vista de uma frente  de esquerda, um simulacro de aliança. Eu compreendo a desilusão de Manuel Alegre e de alguns elementos da esquerda do PS que eram defensores dessa aliança, mas penso que estão um bocadinho ao lado da realidade. António Costa é, foi e tem sido o primeiro-ministro taticamente mais talentoso desde o 25 de Abril. Do ponto de vista tático, acho absolutamente imbatível e extremamente talentoso. Tem metido todos os adversários no bolso, dentro e fora do partido. Daí a geringonça ter sido um simulacro de aliança: serviu-lhe, deita fora e segue. 

A falta de ideologia e de discurso político estão por detrás do enfraquecimento da direita em Portugal?
Eu acho que sim. Hoje a política reduziu-se a um combate de galos. Ainda existe direita e esquerda porque, como dizia o Aristóteles, temos necessidade de opor para pensar. Mas têm cada vez menos conteúdo. A dificuldade que tem o CDS em definir hoje o que quer que seja. O CDS é a favor do casamento gay. É favor daquilo tudo que combateu! Nós somos governados pelo extremismo do centro no qual confluem CDS, PSD, PS, Bloco e PCP. Se vir estes candidatos que agora aparecem por exemplo na crise da direita, eles diferenciam-se por o quê? Por dizerem que vão ganhar (risos). De substancial, não dizem nada diferente. É a retórica vazia do mais anedótico e repulsivo para os cidadãos. 
E vão surgindo depois outras forças mais pequenas. Agora temos um parlamento mais fragmentado. 
Mas isso é uma consequência da crise da democracia representativa. Isso já está a acontecer em toda a Europa. Sempre disse que isso ia acontecer cá em Portugal. O que dava as maiorias era a ideologia. Hoje, não havendo ideologia, há cada vez mais minorias e portanto qualquer maioria só é possível sendo uma soma de minorias. Nós estamos na era das geringonças.

Era isso que ia perguntar: como se governa com tanta minoria?
A primeira grande crise da democracia representativa deu origem aos totalitarismos, o comunismo, nazismo, e foi resolvida com aposta nas grades personalidades. As pessoas apostaram no Roosevelt, Churchil, Adenauer, De Gaulle,… O drama hoje é que as pessoas hoje olham e veem Sócrates, Sarkozy, Berlusconi, Trump. Para quem e que as pessoas hoje vão olhar? 

Há uma maior descrença, tendo em conta os exemplos que vão surgindo.
Exatamente.  

Como vê o Chega? Defende que não há populismo em Portugal, mas não se pode associar este conceito a este partido?
Acho que não. O populismo vive de inimigos internos e externos. E Portugal não os tem. O populismo vive em todo o lado de um inimigo externo que está a invadir o país e daí o nacionalismo e a reclamação das fronteiras. Além disso todos os partidos populistas são, em geral, contra a Europa. Acho que sem estes dois ingredientes, o nosso populismo é mimético.

Mesmo com o discurso em relação aos ciganos?
Claro que está a tentar aproximar-se, está a fazer dos ciganos o que outros fizeram dos refugiados. Mas é um fenómeno que não tem sustentação, não existe como um fenómeno social que alimente o partido. Acho que vive mais do protagonismo individual da pessoa. Enquanto nós recebermos 10 milhões da Europa e não houver problemas de imigração, a situação deverá ser esta. 

E Marcelo Rebelo de Sousa, que análise faz do seu trabalho como Presidente da República? 
Neste momento Portugal está um deserto em termos de personalidades políticas. Só há o António Costa e o Marcelo. Marcelo é, e tenho de reconhecer, muito popular. Ao mesmo tempo, eu conheço-o, é um colega, um professor catedrático como eu, e desse ponto de vista, daquilo que eu podia esperar de um Presidente da República, para mim é muito dececionante. Eu esperava um Presidente de causas. Porque isso de ser um presidente de afetos, das selfies…

Se calhar as pessoas precisam disso…
Mas, do meu ponto de vista, esse não é o papel de um Presidente da República. Ele escolheu esse caminho e é um caminho muito popular, todas as sondagens o dizem. Pensando historicamente, ele arrisca-se a ser lembrado um pouco como foi o Américo Tomás, um Presidente sem conteúdo. Também ninguém tinha nada contra o Américo Tomás e era bem recebido em todo o lado. Esperava mais de um Presidente que é professor catedrático, que intelectualmente é sem dúvida o mais qualificado que tivemos.

E António Guterres? Como se tem saído nas Nações Unidas?
Eu acho que é muito difícil  quando se tem como adversário o presidente dos EUA. Como são eles que pagam quase todas as instituições internacionais, a primeira coisa que fazem quando se zangam com uma instituição é tirar-lhe fundos. Trump já se mostrou agressivo em relação à ONU. Assim é muito difícil que ele tenha condições para fazer um bom mandato, numa instituição que está parada no tempo desde a fundação. Desejo-lhe os maiores sucessos, reconhecendo as grandes dificuldades da situação.

Vamos falar sobre o estado da Cultura em Portugal. Que análise faz desde a sua saída?
A partir de 2000, houve três períodos. De 2000 a 2005, que é um período de paralisia, em que tudo parou. Depois tivemos aquilo que eu chamo a década perdida, de 2005 a 2015, com Sócrates e Passos Coelho. Foi um período em que só se fizeram disparates: o acordo ortográfico, o museu dos coches, o orçamento que chegou quase a zero… E depois há o período de 2015 para cá, que é o período de esperança e de algum desencanto. 

Desencanto porquê?
Porque aquilo que se anunciou não foi cumprido. Anunciou-se uma grande aposta na Cultura, mas continua, a meu ver, a ser um Ministério sem ideias, sem projetos, sem protagonistas e sem orçamento. É um Ministério quase inexistente. L embro apenas isto: o orçamento da cultura no ano passado – só da cultura, porque agora tem a comunicação social, que é a parte de leão do orçamento do setor – é de 244 milhões de euros. O orçamento que eu deixei em 2000 era de 250 milhões, ou seja, seis milhões superior. E não havia nem o Museu de Serralves, que eu inaugurei, não havia Casa da Música, não havia cineteatros por todo o país. A Cultura corre o risco de voltar a ser uma flor na lapela, uma coisa que se exibe nas comitivas.

Então o que deve ser prioridade agora?
O orçamento deve ser o dobro. Precisamos no mínimo de 1% na Cultura. Precisamos de 0,5% do orçamento só para manter as grandes instituições do estado português – a Cinemateca, a Biblioteca Nacional, a Torre do Tombo, os teatros nacionais de Lisboa e do Porto, as grandes fundações como Serralves. E precisamos do resto para fazer funcionar o apoio às artes criativas, à arte contemporânea, à recuperação do património, o apoio ao cinema. O Estado não se deve substituir nem ao cidadão nem ao mercado, mas nós temos um mercado muito pequeno. Não podemos fazer de conta que damos muita importância à cultura e relegá-la para um patamar de miséria. E ter ministros que se resignam com esta situação.

Ia perguntar-lhe o que acha desta ministra.
Eu não acho nada individualmente. Certamente que tenta fazer o melhor que pode. Eu conheço a Graça Fonseca e tenho estima pessoal por ela. Mas como lhe digo, o Ministério, neste momento, não tem ideias, projetos, nem protagonistas. Porque é preciso criar protagonistas. Nós tivemos na arqueologia o João Zilhão, no cinema o Manuel de Oliveira… É preciso apoiar os protagonistas da cultura. Neste momento isso não se vê nem a nível institucional, nem a nível pessoal. Recuso-me a fazer o que quase todas as pessoas que defendem a cultura fazem, que é justamente aquilo que comecei por sinalizar: substituir o discurso político pelo o da economia. Eu podia fazê-lo e dizer que as indústrias criativas quase valem mais do que a indústria automóvel em muitos países, valem quase tanto como o imobiliário. Este discurso está feito. E para o fazerem misturam a arquitetura com o design, com a publicidade, com o património. A cultura faz parte da formação e da qualificação fundamental de um povo e de um país. A cultura não é para ser rentável.

Disse que associa o Acordo Ortográfico (AO) a uma ‘total irresponsabilidade política’, porquê?
O inglês tem 20 variantes, o francês tem 15, são línguas dominantes. Segundo as projeções, o português vai ser falado por 400 milhões em 2050 e nós com a crise demográfica vamos ser 8 milhões. Avançou-se com o AO sem necessidade científica, sem necessidade política. O AO não tem qualquer sentido. Começou por ser um acordo entre sete e dos sete ninguém avançou. Depois fizeram o segundo protocolo retificativo que permitia que o acordo fosse para a frente com três a assinar. Mas ninguém avançou. Os que avançaram não o implementaram. Angola e Moçambique, que são os dois países com maior potencial demográfico, não o assinaram e o Brasil já anunciou que é contra, o Bolsonaro já o denunciou várias vezes. Nós ficamos sozinhos. O Governo e o Presidente da República têm obrigação de olhar para a situação e assumir que isto não correu como se pensava. A consequência vai ser nós, por nossa iniciativa suicidária, tornarmos o português na língua minoritária do português global. Eu acho isto um crime de lesa-pátria. Eu tenho feito uma proposta, que tem merecido imenso apoio: devíamos suspender o acordo, criar um período facultativo de novo, de cinco ou seis anos, e voltar ao português que existia. Os meus filhos mais novos já só falam e escrevem com este AO. Ou nós atalhamos isto aqui, ou vamos criar uma cacofonia completa e vamos tornar-nos nos portuguesinhos minúsculos em termos de língua, quando somos a origem e a matriz do português.  

Tendo em conta tudo o que me disse e todas as ideias que tem, pondera voltar ao mundo da política?
Estou no mundo político desde que me conheço. Nunca fui de nenhum partido a não ser do Partido Socialista. Nunca pedi nada ao partido. Pediram-me várias coisas. Não quero nada político. Sou professor, foi sempre o que eu quis ser e é aquilo com que me identifico. Não tenho nenhuma ambição política.

Mas se houvesse agora um apelo estaria disponível?
Não é algo que eu preveja de todo. Como digo, a minha atividade política é uma atividade que tem na raiz uma perspetiva intelectual, teórica, filosófica. E é aí que continuo. E não vejo ninguém hoje com esse tipo de preocupações. Eu continuo o meu caminho, com o máximo de independência que posso. Gosto imenso da vida que tenho neste momento e não tenho ambição de nada. A vida política é duríssima e só realmente por uma coisa que eu não sei se ainda existe, que é o espírito de missão, o serviço público, o desprendimento total, é que eu podia encará-la. Por isso não estou a ver um contexto em que sequer essa questão se ponha. Em política pensa-se tudo em termos de necessidade. A política é do domínio do imprevisível, tudo pode sempre acontecer e nada pode acontecer.