Morrer à espera do salvador

Se há coisa que os automobilistas portugueses (mesmo os selvagens) respeitam é uma ambulância em serviço. 

Utilizador diário da A5 e da estrada nacional número 6 (mais conhecida por Marginal) e regular da A1 e da A8, para o norte, ou da A2, para o sul, sou diariamente confrontado com longas filas de trânsito.

Ora, se há situações em que os portugueses perdem estribeiras e assumem comportamentos verdadeiramente irracionais é precisamente nas alturas de maior tráfego e maior dificuldade de circulação, seja pela existência de obras nas faixas de rodagem, seja por uma avaria ou um acidente qualquer, com ou sem gravidade, seja simplesmente porque o trânsito não escoa por que não. Do indivíduo que buzina sem que se perceba por que razão ou com que objetivo, ao chico esperto que se mete à má fila e conquista a prioridade que não tinha, ao malcriadão que desata a chamar nomes a todos e mais alguns com ou sem motivo, ao que sai do carro aos berros e pronto a dar uns sopapos no primeiro que lhe fizer frente… Há de tudo na selva de alcatrão.

Mas se o cenário é mesmo assim tão desregrado, é por isso ainda mais de saudar a reação unânime e exemplar dos automobilistas portugueses sempre que surge uma ambulância de luzes ou sirene ligadas: imediatamente, toda a gente se afasta e ai de quem não descobre maneira de dar passagem ao veículo prioritário. É até muitas vezes impressionante e incrível a rapidez com que a ambulância se esgueira e desaparece. E quem diz ambulância, também podia dizer outro carro de bombeiros, uma viatura do INEM ou até mesmo da polícia ou carrinha celular. Toda a gente respeita.

Vem tudo o supra a propósito da notícia da morte de Carlos Amaral Dias no interior da ambulância que chegou à sua residência, em Lisboa, duas horas depois de ele próprio ter ligado para a linha de emergência médica.

Carlos Amaral Dias foi até há cerca de um mês diretor do Instituto Superior Miguel Torga, em Coimbra.

Ora, duas horas chegam e sobejam para uma ambulância percorrer os menos de 200 km que distam de Lisboa a Coimbra.

É absolutamente incompreensível que, na capital do país recém-reeleita melhor cidade do mundo para turismo, os meios de socorro médico demorem duas horas a responder a uma situação de emergência médica.

Não só é incompreensível como é inaceitável.

Carlos Amaral Dias, além de catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, era pai de Joana Amaral Dias, ex-deputada e psicóloga colaboradora da CMTV.

Desconhecendo as causas ou motivações de terem decorrido quase duas horas entre a primeira chamada do professor e psicanalista para a linha de emergência médica e a chegada da ambulância do INEM para lhe prestar auxílio, imagino que este não deva ser nem caso único nem pouco frequente. Simplesmente, sendo a vítima quem foi, não podia deixar de ser público.

E é bom que o seja. Como deviam ser públicos todos os outros casos que se desconhecem.

Sabe-se apenas de alguns.

E as falhas vão da ausência de capacidade de resposta das linhas de emergência – quem não se lembra do que aconteceu durante as tragédias dos incêndios de junho e outubro de 2017? -, aos inadmissíveis casos dos helicópteros inoperacionais por falta de apoio nos heliportos, à falta de ambulâncias ou de pessoal médico ou paramédico…

Não sei se Carlos Amaral Dias, de 73 anos, teria resistido se a ambulância em que veio a falecer tivesse chegado 15 minutos antes, 30 minutos antes, uma hora antes, uma hora e meia antes ou até mesmo 15 a 20 minutos depois de ter feito a sua primeira chamada telefónica – tempo este último suficiente para bem cumprida a dita missão.

Sei que, muitas vezes, a diferença entre a vida e a morte se faz de um segundo.

Como sei que os veículos do INEM transportam muito mais cadáveres do que os óbitos que efetivamente acontecem durante o transporte.

A verdade é que, infelizmente – e por manifesta incapacidade de resposta dos serviços -, há cada vez mais gente a morrer à espera do seu salvador. Seja em casa, na estrada, no corredor de um hospital ou numa lista qualquer.