Afinal, quem tem razão?

Os serviços de saúde públicos e privados são importantes e muito úteis para os pacientes, e, em muitos casos, são complementares

Há alguns meses, fui abordado por uma senhora na casa dos cinquenta anos, não minha doente, que conhecendo os meus artigos no SOL fez questão de me contar uma história passada com ela; e que eu, por considerar pertinente e merecedora de uma análise mais profunda, venho agora partilhar com todos. 

O caso tem que ver com o procedimento médico perante as queixas de uma doente – e podia ter acontecido a qualquer um. Quero deixar bem claro que não conheço a situação do ponto de vista clínico e não estou a fazer aqui nenhum juízo de valor. Limito-me a descrever o que me foi contado, sem pretender tirar conclusões precipitadas, respeitando as partes envolvidas.

Por sofrer de varizes dos membros inferiores e daquilo a que as pessoas chamam (erradamente) ‘derrames’ – situação que incomoda particularmente as senhoras, em especial no Verão, pois além de causar dores, pernas inchadas e cansaço, é inestético  a doente recorreu ao seu médico de família que, depois de lhe solicitar os exames complementares necessários, entendeu referenciá-la para a consulta de Cirurgia Vascular num dos hospitais de referência. 

Ao observá-la, o médico especialista que a avaliou concluiu ser necessário o uso de meias elásticas e medicou-a sintomaticamente, afastando desde logo qualquer solução cirúrgica. 

Não satisfeita com a decisão clínica, talvez por não estar à espera de tanta simplicidade face à complexidade das suas queixas, a doente quis ouvir outra opinião.

Assim, uma vez que dispunha de um subsistema de saúde, marcou nova consulta poucos meses depois num centro clínico privado, onde se dirigiu como se se tratasse de uma primeira consulta sobre o seu problema. Ao entrar no gabinete médico, dá de caras com a mesma médica que a atendera no hospital! Mas não se descaiu. E a especialista, sem a reconhecer, logo que a observou não teve hesitações: aconselhou-a a ser operada de imediato. 

Aí, a doente, indignada, depois de lhe revelar toda a história, perguntou-lhe ironicamente: «Afinal quem tem razão? A médica que me viu no hospital ou a que me observou hoje, sendo a mesma pessoa?». E saiu porta fora, muito confusa e descrente dos médicos.

Esta história merece uma particular atenção, pois tem a ver com a medicina estatal e a medicina privada, cujo tema anda nas bocas do mundo há muito tempo.

No primeiro caso, o que mais conta é a poupança, e quanto mais se poupa mais se ganha; no outro, é precisamente o contrário: o lucro é a palavra de ordem. Fala-se cada vez mais que os médicos deviam optar – trabalhando só no setor público ou só no privado – vindo sempre à discussão as condições de trabalho e o aspeto remuneratório, até aqui um dos principais obstáculos para se avançar com tal opção. 

Há, no entanto, um ponto que me parece inquestionável: a medicina é e será sempre a mesma, devendo prevalecer o bom senso na tomada de decisões. As doenças são as mesmas, independentemente de quem as suporta. E os doentes têm o direito de recorrer ao setor público ou ao privado, sem ficarem sujeitos a uma abordagem diferente consoante a escolha que fizeram. 

Por outro lado, convém irmos corrigindo a ideia que prevaleceu anos e anos de que os doentes para serem mesmo bem tratados tinham de recorrer a um hospital privado. Pensar isto é tão errado nos dias de hoje como defender o contrário, como alguns facciosamente fazem – elegendo o serviço público como a única solução capaz de resolver os problemas dos doentes. 

Em minha opinião, ambos são importantes, muito úteis para os pacientes, e, em muitos casos, podem ser até complementares, razão pela qual nenhum deles deverá ser excluído à partida. O que considero essencial é que haja uma completa clarificação de funções, para eliminar eventuais dúvidas, e todos saibam com o que podem contar. 

No caso da história atrás contada, até é possível que o caso clínico tenha sofrido alterações rápidas e a decisão de se avançar para a cirurgia, hipótese inicialmente excluída, se revelasse algum tempo depois como absolutamente necessária. Mas no espírito da doente a ideia que ficou não foi essa e a dúvida instalou-se, trazendo consigo a desconfiança e um lamentável mal-estar.

Por aqui se vê como é necessário haver uma clara e completa definição das ‘regras do jogo’, para acabar de vez com os mal-entendidos. Se nada se fizer e continuarmos a navegar nestas águas turvas, ninguém se admire com a reação dos doentes a questionarem com desconfiança e indignação: «Afinal, quem tem razão?».