A saudade que devíamos desconhecer

O (bom) exemplo das estações de Aveiro.

Mais do que uma palavra sem tradução, saudade é um sentimento que todos devíamos desconhecer. Porquê? Porque é dor ou aperto que se tem sem retorno, porque não enriquece, antes empobrece, porque só fragiliza quem a tem, quem a sente.

A memória não, antes pelo contrário. 

Só devíamos ter memória. E, por mais que nos custe, bem querê-la e respeitá-la.

Em troca, prescindíamos bem da saudade. Que nos pesa, martiriza.

Se recordar é viver, a saudade mata. Aos poucos, vai moendo.

Recordo-me da antiga estação de comboios de Estarreja, onde fui com meu Pai levantar a minha primeira bicicleta, despachada em Vila Franca de Xira, no início das férias grandes (que eram dois meses na Murtosa e na Torreira) e onde fui voltar a despachá-la rumo ao Algarve (onde passava o mês de setembro).

Vá lá saber-se por que motivo, deu-me este fim de semana para fazer um pequeno desvio, ali chegado à rotunda do Café Pessoa, e descer a Av. dos Viscondes de Salreu, mais conhecida por Av. da Estação, que era também a rua principal de Estarreja e termina, cá em baixo, junto à linha de comboio e à Estação de Caminhos de Ferro, inaugurada em meados do século XIX.

Mas eis que já lá a chegar, desprevenido, apanhei choque digno de não mais esquecer: o antigo edifício de rés-do-chão e primeiro andar, com fachada de janelas e portas altas e cantarias em pedra, da sala de espera e das bilheteiras, às de despacho de malas, malões e demais bagagem, como a minha bicicleta, às dos escritórios e à do chefe da estação… que linda que era, com  a sua simplicidade, a Estação de Estarreja.

Era. Porque (aquela) já não existe.

O choque vem-nos do que não restou e do que lá se ergueu: um mamarracho cor de laranja que mais parece uma estação de serviço de uma estrada qualquer. 

Meia-volta e andor, que ali nada há que nos retenha e sobra a vergonha por quem mandou fazer tamanha aberração.

Ainda não refeito do choque, busco na internet por informação.

Faz 14 anos que os senhores que governavam a terra mandaram demolir a antiga Estação para dar «lugar ao edifício atual de estética discutida», como pode ler-se na página de Facebook História de Estarreja e da Murtosa.

‘Estética discutida’ é um cumprimento ao que nos é oferecido ao olhar e que nos enche de saudades do velho e singelo edifício.

Não era tão belo, nem de fachada tão trabalhada nem com tantos e tão extraordinários painéis de azulejos como a antiga Estação de Aveiro.

Mas também os tinha e tinha-os bem trabalhados no seu interior, sobretudo na sala de espera e das bilheteiras.

Foi abaixo: um verdadeiro atentado!

Ao menos tivessem seguido o exemplo de Aveiro. Investiu-se muito dinheiro na construção de uma nova, moderna e bem maior plataforma (ou interface) ferroviária e rodoviária, mas cuidou-se de manter o magnífico património histórico que constitui a antiga Estação, com  seus maravilhosos painéis de azulejos assinados por Jorge Colaço.

Aliás, como em Lisboa a Gare do Oriente não destruiu Santa Apolónia nem a estação de Campolide o sempre soberbo Terminal do Rossio, nos Restauradores.

Já bem nos bastava as dezenas e dezenas de estações e apeadeiros votados ao abandono com a desativação das linhas e ramais da CP.

Alguns condenados à ruína – como o apeadeiro de Murtede, em Cantanhede, a umas poucas dezenas de quilómetros de Estarreja, no ramal da Figueira da Foz e da Pampilhosa -, outras à espera de alguém que nelas possa e queira investir – como a de Alcácer do Sal, no Alentejo, há anos entaipada e decorada com números de telemóveis e a palavra «Trata».

Um país sem memória, ou que assim trata – maltrata – e desrespeita o seu património, dificilmente entra nos carris.

E se já há muito descarrilou…