Que a terra te beije

O país não lhe podia oferecer o que não tinha para dar: dignidade. O país tem muitas esplanadas e raríssima cultura. O país foi para o artista como um lobo: saltou-lhe em cima por todos os lados, agarrou-o por braços e pernas e abocanhou-lhe a garganta

José Lopes, o ator que beijava a terra num gesto de saudação à vida e à amizade, partiu este mês, a hora e dia incerto mas seguramente com muitas refeições em branco. Nos últimos segundos de lucidez, talvez um raio de humor, traço que acompanhava o ator até nos piores momentos, o tenha levado a dizer para com os seus botões: «Ia muito melhor de estômago cheio».

Com uma carreira no cinema e no teatro elogiada pelos pares, José, que conviveu pela interpretação das suas peças, com grandes espíritos como o surrealista anarquista Antonin Artaud ou Jean Genet, mestre do teatro do absurdo, foi descoberto sem vida por um amigo numa tenda junto a  uma estação de comboios onde passara a viver desde que a Segurança Social lhe cortou o rendimento mínimo.

O país não lhe podia oferecer o que não tinha para dar: dignidade. O país tem muitas esplanadas e raríssima cultura. O país foi para o artista como um lobo: saltou-lhe em cima por todos os lados, agarrou-o por braços e pernas e abocanhou-lhe a garganta.

Homem do teatro e do cinema, nunca teve uma visão mercantil da arte. O que lhe traçou o destino. Rui Zink, seu colega dos tempos de liceu que, em 1975, com ele formou o grupo de Teatro Arletes, descreve-o como um «puro», uma criatura que não nascera «armada para a vida»: «Sempre ouvi dizer que é preciso ser esperto e estar atento. Pois o Zé não era esperto, nunca esteve atento. E, como acontece com muitos atores neste país, não foi para as novelas e morreu de fome». John Milton, esse, diria que mais vale reinar no Inferno do que servir no Céu. Não te venham falar agora de caridadezinha.

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