O provável último OE de Centeno

O ministro das Finanças acena com excedente orçamental de 0,2% e crescimento económico de 1,9%. Analistas contactados pelo SOL criticam aposta no agravamento da carga fiscal.

A ideia de um ‘Orçamento histórico’ acenada por Mário Centeno não convence os analistas contactados pelo SOL. Mas a fórmula não surpreende, já que, mais um ano, o Governo volta a insistir no agravamento da carga fiscal. E os números falam por si: vamos assistir a uma subida da carga fiscal de 34,9% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 para 35,1% do PIB em 2020 – ou seja, um novo máximo face ao recorde estabelecido em 2018 e será a maior subida desde 1995. A receita fiscal passa para 25,1%, equivalente a 54.709 milhões de euros em 2020, enquanto as contribuições sociais efetivas aumentam para 10%, correspondendo a 21.736 milhões de euros.
 
Ainda assim, o ministro das Finanças desvaloriza esta tendência e prefere elogiar prazos e também resultados. «Nunca antes, em democracia, um Orçamento tinha sido feito em tão pouco tempo», afirmou o governante, repetindo o que tinha dito na noite da entrega do documento. «Foram muitos dias de antecipação face às datas legais mínimas. E isso acontece como um sinal da importância que o Governo dá a este documento», garantiu.
 
Mário Centeno prefere chamar a atenção para o facto de Portugal vir a ter um excedente orçamental equivalente a 0,2% do PIB – a concretizar-se, será o primeiro saldo orçamental positivo da democracia. Um cenário que, no seu entender, «reflete uma trajetória de confiança e responsabilidade». Também o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, veio entretanto garantir que o Governo «não está agarrado a esta ideia do excedente», garantindo que «o excedente não é um fim em si mesmo», mas «um instrumento para garantir a sustentabilidade das políticas públicas», num quadro em que Portugal tem ainda «um elevado nível de endividamento» que herdou da crise económica.
 
As metas não ficam por aqui. O Governo também aponta para uma taxa de crescimento económico de 1,9%, para uma descida da taxa de desemprego para 6,1%, mantendo uma previsão de défice de 0,1% para este ano. Ao mesmo tempo, Centeno aponta para uma «trajetória de redução da dívida «para patamares inferiores a 120% do produto interno bruto (PIB)», o que permitirá que Portugal deixe de fazer parte de «um conjunto de países que estão na cauda deste indicador» na Europa. E, segundo o ministro, este valor é «totalmente compatível com o objetivo desta legislatura de trazer a dívida para níveis inferiores a 100%».
 
O governante não tem dúvidas: «Atingimos um patamar absolutamente histórico no saldo estrutural e atingimos o objetivo de médio prazo. Pelo quarto ano, não há surpresas. É isto que eu chamo credibilidade», acrescentando que «temos hoje uma percentagem de PIB em exportações e crescimento absolutamente recorde». 
 
Apostas ‘erradas’
Mas, apesar dos analistas contactos pelo SOL elogiarem o facto de, pela primeira vez em 40 anos, o documento apresentar um saldo orçamental positivo para 2020, criticam o caminho que está a ser feito para se chegar a este patamar. 
 
André Pires, analista da XTB, lembra que o Executivo espera mais 2050 milhões de euros em impostos face ao que se verificou em 2019 a entrar nos cofres do Estado, principalmente por meio do IVA e do IRS. «Este aumento vem contrabalançar um agravamento da despesa, sendo a maior parte desses gastos ‘sem retorno’, no sentido de descongelar carreiras e atualizar salários», refere ao SOL.
 
E os problemas não ficam por aqui. Outro entrave diz respeito ao IRC das empresas: garante que este imposto não diminuiu. E levanta também dúvidas em relação ao aumento salário mínimo de 600 para 635 euros. «Estas duas medidas dificultam a vida das PME, que constituem grande parte do tecido empresarial português. A atualização dos escalões do IRS em 0,3% também me parece insuficiente, em vista da inflação prevista para 2020 e do aumento salarial em mais de 3%, que poderá levar à subida de escalão, anulando o benefício procurado pelo aumento salarial», acrescenta. 
 
Também para Pedro Amorim, analista da corretora Infinox, o documento não mostra nenhuma novidade em relação à estratégia apresentada no ano passado, focando-se ainda mais no consumo. «Existe aqui a preocupação de os rendimentos mais baixos aumentarem porque a taxa marginal de consumo é de quase 100%. Existe uma fraca preocupação com a queda do investimento devido à inversão do ciclo económico e a solução apresentada é compensar com um aumento ainda maior do consumo», diz ao SOL, chamando ainda a atenção para o facto de o Governo não estar a ter em conta o arrefecimento económico na zona euro. 
 
«Existe um Orçamento expansionista com muitos aumentos. Os aumentos na função pública parecem, para mim, os mais polémicos. Os salários da função pública vão ser aumentados em 0,3% em 2020. No momento em que a folha salarial do Governo aumentou 15% em relação à última legislatura», frisa o mesmo analista, acrescentando que «um aumento de 0,3% deve envergonhar qualquer pessoa sentada nos gabinetes do Executivo. A inflação encontra-se no mesmo valor, 0,3%, o que significa que o aumento real é de 0%. Num salário de mil euros, o aumento líquido pode nem chegar aos seis euros por mês».
 
OE aquém das expectativas
Para Armando M. Oliveira, advogado especialista em direito fiscal da sociedade de advogados Aventino & Associados, trata-se de um Orçamento que desilude. «As medidas que poderiam trazer algum alívio fiscal são reduzidas e de pequeno impacto. Em sentido contrário, o agravamento de tributação, em IRS e IRC, é particularmente gravoso, visto atacar com especial peso os grandes motores da economia nacional – imobiliário e turismo. A penalização da tributação do alojamento local em zonas de contenção, juntamente com o agravamento da taxa de IMT na aquisição de imóveis de valor superior a um milhão de euros, levará com toda a certeza a uma desaceleração do investimento imobiliário», admite ao SOL.
 
Para o responsável não há dúvidas: é um Orçamento com pouco impacto em medidas estruturais. E chama a atenção para algumas delas. Como é o caso das alterações em sede de IRS, considerando que as medidas de alívio fiscal são vistas como «irrelevantes e, algumas delas, sem nexo». E dá como exemplo «a dedução à coleta dos agregados familiares em que existam dois ou mais dependentes com idades inferiores a três anos (com referência a 31 de dezembro do ano fiscal em causa): ao prever que os dependentes tenham ambos idade inferior a três anos, torna a aplicação desta medida inócua e não se percebe como poderá incentivar a natalidade».
 
Apesar das críticas, elogia a mudança no regime do diferimento na tributação de mais-valias de imóveis afetos a uma atividade empresarial que sejam restituídos ao património particular do sujeito passivo e gerem, durante cinco anos consecutivos, rendimentos prediais. «De notar que esta medida não é uma eliminação de tributação, mas apenas um diferimento», refere.
 
Uma outra medida considerada relevante por este analista diz respeito à dedução por lucros retidos e reinvestidos. «Embora não sendo uma medida nova, vê o seu âmbito alargado, ou seja, passa a prever que a dedução à coleta de IRC até 10% dos lucros retidos que sejam reinvestidos em aplicações relevantes nos termos da lei passe a ser efetuada no prazo de quatro anos (atualmente, três anos) contados a partir do final do período de tributação a que correspondam os lucros retidos e propõe ainda que o montante máximo do benefício anual correspondente à dedução de lucros retidos e reinvestidos seja aumentado de 10 milhões para 12 milhões de euros».
 
Metas comprometidas?
O Conselho das Finanças Públicas (CFP) já veio validar o cenário macroeconómico, ao contrário do que tinha feito no documento deste ano. «Em resultado da análise efetuada às previsões macroeconómicas subjacentes ao Projeto de Plano Orçamental para 2020, o Conselho das Finanças Públicas endossa as estimativas e previsões macroeconómicas apresentadas», refere. No entanto, admite que, para 2020, os riscos associados ao cenário são descendentes e «sobretudo de natureza externa».
 
Mas nem todos os cenários são otimistas. A eventual saída de Mário Centeno do Ministério das Finanças durante a atual legislatura pode traduzir-se em «alterações significativas na condução da política orçamental», referiu o Gabinete de Estudos do Fórum para a Competitividade, lembrando que o próximo governante a assumir essa pasta pode não conseguir manter uma «cativação fortíssima das despesas» como a que tem sido levada a cabo por Mário Centeno.