Mortes maternas vão passar a ser analisadas por comissão própria

Análise à mortalidade materna detetou falhas nas estatísticas, mas destacam-se dois padrões: o aumento das mortes foi ligado a gravidezes tardias e de alto risco em jovens com doenças graves. Processos não permitiram perceber se todas foram informadas dos riscos que corriam ao engravidar.

As mortes na gravidez, parto e pós-parto vão passar a ser analisadas por uma comissão permanente e serão objeto de inquéritos epidemiológicos. A decisão foi anunciada ontem pela diretora-geral da Saúde, que apresentou os resultados da análise aos casos registados nos últimos anos e que reconheceu que atualmente nem todos os processos clínicos permitem esclarecer o acompanhamento dado às grávidas.

O trabalho, que ainda não foi divulgado na íntegra, encontrou falhas nas estatísticas, mas confirma um aumento da mortalidade materna.

Com os dados disponíveis, a DGS sinalizou dois padrões que serão alvo de um estudo mais aprofundado. Por um lado, 40% das mulheres que perderam a vida neste contexto tinham mais de 35 anos, renovando-se o alerta sobre o risco de maiores complicações em gravidezes mais tardias. Se esta é uma tendência documentada noutros países, Graça Freitas indicou que o trabalho permitiu perceber que alguns casos fatais são de mulheres “relativamente jovens” que tinham quadros de doença grave anteriores à gravidez. A análise dos processos clínicos não permitiu perceber se todas foram informadas dos riscos antes de engravidarem e se tiveram acesso a consultas de planeamento familiar, adiantou a diretora-geral da Saúde.

Entre estes casos incluem-se quadros de doença pulmonar grave, cancro e cardiopatias, com registos de tromboembolismos e hemorragias. “Este é um fenómeno novo. Alguma destas mulheres se calhar há alguns anos não chegariam à idade fértil. Chegaram, engravidaram e tiveram precocemente mortalidade. Perante estes dados temos duas preocupações, por um lado se existe uma comunicação efetiva do risco e, por outro, se estas mulheres que têm doenças de base graves e que são seguidas por vários médicos assistentes estarão ou não a ser encaminhadas para consultas preconcecionais ou de planeamento familiar”, disse ao i Graça Freitas. “No fim, a decisão de engravidar é sempre da mulher, mas são gravidezes de alto de risco que exigem um acompanhamento complexo e temos de garantir que esses cuidados são prestados. São matérias em que queremos perceber o que se está a passar e se é preciso maior investimento. Isto pode estar a acontecer, os registos que temos é que não nos permitem acompanhar todo esse processo.”

estatísticas incompletas A análise foi pedida pela DGS a um grupo de trabalho depois de as estatísticas dos últimos dois anos terem feito soar os alarmes – em particular as de 2018, que mostravam que as mortes maternas tinham praticamente duplicado, de nove casos em 2017 para 17 no ano passado.

A análise revelou que os dados continham falhas. Em 2018, erros no preenchimento dos certificados de óbito levaram a que fossem contabilizadas duas mulheres que não estavam grávidas, o que levou os peritos a reduzir o número para 15 mortes. Já nos dois anos anteriores a DGS corrigiu o que diz ser uma subnotificação habitual neste indicador, pela dificuldade em incluir casos em que as mortes ocorrem em fases precoces da gravidez. A DGS concluiu que nestes dois anos houve sete óbitos que entram na definição de morte materna e não estavam nas estatísticas. Assim, nesta versão revista dos dados, as mortes maternas aumentaram de 11 casos para 15 casos em 2018. Perante estes dados, a DGS adiantou que irá rever as estatísticas da última década, trabalho feito pela última vez para o período entre 2001 e 2007. “Não somos o único país a fazer esta correção de dados e com estes dados continuamos perto da média da OCDE”, disse Graça Freitas, admitindo que a atualização dos indicadores deverá piorar a posição do país em próximas comparações internacionais, em que Portugal chegou a surgir no início da década como tendo das taxas de mortalidade materna mais baixas.

Sem revelar quantas mortes ocorreram no privado, Graça Freitas salientou que não foram encontrados padrões que permitam distinguir a qualidade do acompanhamento num ou noutro setor, salientando contudo que a maioria das mortes ocorreu em hospitais públicos, para onde são encaminhados os casos mais complexos.

Também não foi associada nenhuma morte a falta de capacidade de resposta no SNS. “Na informação recolhida pelos colegas que fizeram visitas a todos os hospitais onde estas mortes ocorreram não houve um padrão que permitisse afirmar ou infirmar isso”, disse Graça Freitas, revelando ainda assim que há casos em que as famílias apresentaram queixa na justiça.

Diogo Ayres de Campos, secretário-geral da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia e um dos peritos que colaborou com a DGS na análise, disse ao i que a expectativa é que a comissão que propuseram permita ir mais longe na investigação, que para já aponta para um fenómeno em que não existe uma causa única – além das gravidezes tardias e com doença prévia, o médico refere ainda casos de mulheres de países de expressão portuguesa que dão entrada nos hospitais nacionais com doença grave. O obstetra admite também que em alguns casos faltavam elementos, por exemplo mortes fora dos hospitais, salientando a importância de avançar com inquéritos epidemiológicos. “À semelhança do que existe noutros países da Europa, fazendo-se um inquérito confidencial será possível analisar todos os aspetos de forma a permitir tirar ilações e melhorar os cuidados no futuro”.